segunda-feira, 15 de junho de 2015

A de "aparece de vez em quando uma inês que gostaria de fotografar coincidências" (III)



[Carlos Botelho, “Retrato de Berta Mendes” - detalhe, 1932]



ATENÇÃO


ATENÇÃO   as aranhas percorrem a cidade 
os vermes infiltram-se   Deus não pára de morrer
Exaustivamente a noite despe-se para o amor 
sujo   baleado   sinistro
Os assassinos rodeiam a mesa de oiro 
pesados de ódio   metálicos   podres
e as múmias falantes completam o seu dia

Estamos cercados de postes 
devorando automóveis   telégrafos
a minha ternura é este avião que passa
este cigarro de treva e limo
Nascemos (ouve-me bem) para alimento da noite 
sem outra voz senão veneno
porque entre os vidros e o horizonte
são doidos e lívidos os sonhos que restam

Chegaram panteras escarlates a moer raiva 
amantes aterrorizados   horas    precipícios
e nem uma pequenina flor ou uma praia
ou um leito para estendermos os cabelos

Só a miséria destas noites    o cansaço deste tempo

E o MAR   entre fumo e chuva 
o AMOR dissolvido sob uma campânula   a VIDA


António Barahona, Pássaro-Lyra (Primeiro Tomo da Suma Poética),
Lisboa: Averno, 2015




[ID, Sintra, Maio 011]

1 comentário:

Anónimo disse...

Muito bem. Muito bem, mesmo.

Vítor