sábado, 23 de dezembro de 2023

B de Biorritmo (XXIX)


TRISTE SORTE


E ando na vida à procura
Duma noite menos escura
Que traga luar do céu.
Duma noite menos fria,
E em que não sinta a agonia
Dum dia a mais que morreu.

Vou cantando amargurado,
Mais um fado e outro fado
Que fale do fado meu.
Meu destino assim cantado
Jamais pode ser mudado
Porque do fado sou eu.

Ser fadista é triste sorte,
Que nos faz pensar na morte
E em tudo o que nós morreu.
E andar na vida à procura
Duma noite menos escura
Que traga luar do céu.


- João Ferreira Rosa

domingo, 3 de dezembro de 2023

E de Espera (LVIII) - 1.º Domingo de Advento


"(...) É para isso também que serve o círculo, a sua ideia. Serve para preparar o caminho da escuridão e do desconhecido, um caminho inteiramente interior. Às vezes apetece-me desejar a mim mesmo boa-noite, antes de me virar sobre o meu lado direito, que é o lado em que sempre penso trazer o coração."


João Miguel Fernandes Jorge, O Próximo Outono,
Lisboa, Relógio D'Água, 2012

sábado, 30 de setembro de 2023

sábado, 23 de setembro de 2023

P de "Paredes frias" (III)


E a tua ferida, onde está?
Pergunto onde fica, em que lugar se oculta a ferida secreta para onde foge todo o homem à procura de refúgio se lhe tocam no orgulho, se lho ferem? Esta ferida - que fica assim transformada em foro íntimo - é que ele vai dilatar, vai preencher. Sabe encontrá-la, todo o homem, ao ponto de ele próprio ser a ferida, uma espécie de secreto e doloroso coração.
Se observarmos o homem ou a mulher que passam com olhar rápido e voraz - e também o cão, o pássaro, uma panela - a velocidade do olhar é que nos mostra, ela própria e com rigor máximo, que ambos são a ferida onde se escondem mal sentem o perigo. O quê? Já lá estão, já os conquistou - deu-lhes a sua forma - e para ela a solidão: lá estão inteiros no retesar de ombros em que passam a concentrar-se, com toda a vida a confluir na ruga maldosa da boca, e contra a qual nada podem nem querem, pois dela é que sabem esta solidão absoluta, incomunicável - este castelo da alma - para serem a própria solidão.


Jean Genet, O Funâmbulo,
trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: Hiena Editora, 1984





[Lisboa, 17/05/013]




O CIRCO


Venham ver, venham,
a minha oculta ferida.
Tem rebordo roxo
e paixão ao meio. 

É bonita e quero-lhe muito.
É flor de passiflora à botoeira
da pele que subpulsa,
que repulsa,
meus audiovisuais que aguentam tudo:
minha náusea, meu coração-culpa.

Brinco enquanto finjo um outro assunto.
Rif-raf é um brinquedo de criança
ou nada quer dizer
senão imagem onomatopaica.
Diagrama, indica infecção
palustre de água-viva e memória
tão secreta que não mata.

Vê-se e não se vê
a minha oculta ferida.
Mas tem cruzes e espinhos.
No centro uma gota brilha
rocio
ou som murmurado
que se transmite sem pedir palavra.

A minha ferida sangra 
como que entornada.
Venham ver, entrem,
que não se paga nada. 


Ruy Cinatti, 75 Poemas,
org. Manuel de Freitas, Lisboa: Averno, 2014

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

R de Rezar na era da técnica (VII)




ID | 2019

A de Amor (XIV)


21 - DA SUBLIMIDADE DO AMOR


É recorrente, nos programas de televisão vespertinos e entre amigos dados às chamadas "conversas moles", debater, pela enésima vez, as diferenças entre paixão e amor. E, contudo, creio que não existem. Não acredito em amores desapaixonados, ainda que o preço a pagar por este entendimento seja, o mais das vezes, a confrontação com a finitude dos amores. O que não convem a quem pretende vender ao mundo uma imagem estável ou viver na comodidade perguiçosa do conhecido, por oposição aos trabalhos a que os recomeços, as reinvenções, obrigam. Não há - nos amores de natureza erótica, de raiz erótica, de fundação erótica - grandes espaços para fraternidades, filiações, amizades que não estejam subordinadas ao erotismo (como na poesia não há espaço para mensagens que não estejam subordinadas ao "dizer poético", que acaba por ser, ele próprio, a sua mensagem mais abrangente e perene).
     Mas o que não há, também, é uma obrigatoriedade de amar. Nesse plano, há muitos estádios intermédios que podem até, dependendo das circunstâncias, convir mais a cada qual. Até porque o amor não é uma questão de opção - é irracional, involuntário e altamente improvável. Pressupõe quadros, psicológicos e vivenciais, culturais e físicos, adequados e propícios. O amor é o menos democrático dos sentimentos, o mais elitista (só que, cá está, este elitismo é do seu foro interno - não de qualquer outro). E, sem que isso contradiga o que disse de início, o amor é eterno: quando um amor termina é sinal de que uma das pessoas em causa, ou ambas, morreram, ainda que a morte seja metamorfose ou renascimento ou morte-viva.
     E pode, eventualmente, nestes casos, o amor permanecer eternamente vivo no outro, como se votado a um morto ou como amor sem objecto que não o próprio amor, tornando-se, assim, ainda mais substantivo.
     Este tipo de amor, estou em crer, só é permitido aos poetas.


Miguel Martins, Lérias,
Lisboa: Averno, 2011

terça-feira, 12 de setembro de 2023

P de "(As) Praias Obscuras" (IV)

 



Margaret Millar fotografada pelo marido.


*




Margaret Millar, Um estranho no meu túmulo,
trad. de Inês Dias, Lisboa: Averno, 2011


quarta-feira, 6 de setembro de 2023

A de (Companheiros de) Aniversário

5 de Setembro de 1912
(12 de Agosto de 1992)

domingo, 27 de agosto de 2023

S de Santa Cruz (V)


PRIMEIRO AMOR


Nenhuma gaivota
chegou às minhas mãos
sem as tuas asas.


- ANTONIO HERNÁNDEZ




[Santa Cruz, com o Manuel / Setembro 012]

quinta-feira, 17 de agosto de 2023

M de 'Memory of a Bird'



[Paul Klee, 1932]

quarta-feira, 16 de agosto de 2023

C de Começar o dia com um livro novo (LX)

 



Cees Nooteboom, Despedida (Poema em tempo de vírus),
tradução de Ana Maria Carvalho, 
Lisboa: Alambique, 2023.

D de "Do outro lado do rio" (II)


"[...] Os dias passam; por vezes, ouço a vida passar. E ainda não aconteceu nada; não há nada de real ainda, à minha volta; não páro de me dispersar, e de me perder em fios de água, quando eu desejava ter um só leito e fazer engrossar o meu caudal. Porque é assim que deve ser, não é verdade, Lou?: nós queremos ser como um rio, e não um sistema de canais para irrigar prados. Devemo-nos reunir e fazer soar o trovão, não é verdade? Um dia, quando formos muito velhos, lá para o fim, talvez nos assista o direito de ceder, e de nos espraiarmos num delta..."


Rainer Maria Rilke
in Querida Lou, trad. António Gonçalves, 
Sintra: Colares Editora, 1994




[ID, Portas do Ródão, 09/015]

sexta-feira, 28 de julho de 2023

D de Do outro lado do espelho




*




Beatrix Potter, "O Conto do Porquinho Robinson",
in Contos, trad. de Inês Dias,
Lisboa, Relógio D'Água, 2017

sexta-feira, 14 de julho de 2023

L de (A) Luz da Sombra - XXVb


"[...]
Tinham as suas próprias palavras para as coisas, um jargão de origem obscura: por razões que até eles tinham esquecido, referiam-se à manteiga como queijo; chamavam inhos aos melros que pousavam nos cimos das árvores. Era um círculo que traçavam à sua volta como se fosse um abrigo. 'Não contes a ninguém de França', começava Mia, antes de lhe contar baixinho um segredo, e a resposta de Warren era invariavelmente: 'Nem uma girafa selvagem me conseguiria arrancá-lo.' 
E depois, aos onze anos - quase doze -, Mia descobrira a fotografia.
[...]"


Celeste Ng, Pequenos Fogos em Todo o Lado,
trad. de Inês Dias, Lisboa, Relógio D'Água, 2018




Abelardo Morell, "Laura and Brady in the shadow of our house", 1994

quinta-feira, 13 de julho de 2023

a de "aparece de vez em quando uma inês que gostaria de fotografar coincidências"


"Le hasard a de ces sortilèges, pas la nécessité. Pour qu’un amour soit inoubliable, il faut que les hasards s’y rejoignent dès le premier instant comme les oiseaux sur les épaules de Saint François d’Assise."


MILAN KUNDERA

terça-feira, 20 de junho de 2023

T de (Uma) teoria de pássaros (XXXV)

 


T de (Uma) teoria de pássaros (XI)

CONQUISTA

III

Os pássaros conhecem-me.
Eu não os conheço:
conhecer pássaros é um destino diferente.

Ao secar,
indicarei caminhos com os meus ramos bruscos.


Jorge de Sena, Coroa da Terra,
Porto: Lello & Irmão, 1946

segunda-feira, 29 de maio de 2023

F de Feira do Livro (II)


PARA A FEIRA DO LIVRO


A Ángel Crespo


Folheada, a fôlha de um livro retoma
o lânguido e vegetal da fôlha,
e um livro se folheia ou se desfolha
como sob o vento a árvore que o doa;
folheada, a fôlha de um livro repete
fricativas e labiais de ventos antigos,
e nada finge vento em fôlha de árvore
melhor do que vento em fôlha de livro.
Todavia a fôlha, na árvore do livro,
mais do que imita o vento, profere-o:
a palavra nela urge a voz, que é vento,
ou ventania, varrendo o podre a zero.


*


Silencioso: quer fechado ou aberto,
incluso o que grita dentro; anônimo:
só expõe o lombo, posto na estante,
que apaga em pardo todos os lombos;
modesto: só se abre se alguém o abre,
e tanto o posto do quadro na parede,
aberto a vida tôda, quanto da música,
viva apenas enquanto voam suas rêdes.
Mas apesar disso e apesar de paciente
(deixa-se ler onde queiram), severo:
exige que lhe extraiam, o interroguem;
e jamais exala: fechado, mesmo aberto.



João Cabral de Melo Neto, A educação pela pedra,
Rio de Janeiro: Editôra do Autor, 1966
(comprado, hoje, na Feira do Livro de Lisboa)

segunda-feira, 20 de março de 2023

N de "no lugar seguro da próxima Primavera" (VI)


Ri sobre mim a Primavera. Regressam,
como se sabe, as andorinhas. Partem para longe
as palavras estultas dos amigos.
Já voltam para mim as antigas
palavras de amor. Em ti, rapaz,
resplandecem. Brincam nos teus passos
inseguros. Mas segura em mim caminha
solitária e serena a felicidade.


- Sandro Penna, No Brando Rumor da Vida 
(Assírio & Alvim)

domingo, 19 de fevereiro de 2023

L de Lar


MY HOUSE, I SAY 


My house, I say.  
But hark to the sunny doves 
That make my roof the arena of their loves, 
That gyre about the gable all day long 
And fill the chimneys with their murmurous song: 
Our house, they say; and mine, the cat declares 
And spreads his golden fleece upon the chairs; 
And mine the dog, and rises stiff with wrath 
If any alien foot profane the path. 
So, too, the buck that trimmed my terraces, 
Our whilom gardener, called the garden his; 
Who now, deposed, surveys my plain abode 
And his late kingdom, only from the road.

 
Robert Louis Stevenson

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

S de "Sempre disse tais coisas esperançad@ na vulcanologia" (XII)


A ÁRVORE DAS RAÍZES


a minha infância tem uma árvore
assombrosa. é uma bela história de amor
entre as nossas mãos pequeninas
e aqueles seus braços enormes, bravos e
loucos como o riso das mães,
que faziam abrandar o medo e a tarde.

oito, nove, dez: virávamo-nos à procura dos outros
pelo labirinto de grutas cavado nas raízes,
ao abrigo do vento e da solidão que não tardaria
a descobrir o nosso esconderijo.

ao parar, há dias, na Deslocação do Labirinto,
imaginei que talvez Vieira da Silva
tivesse sonhado a minha árvore.
ou vice-versa. dois seres mágicos do mesmo elemento
engendrando-se um ao outro nas raízes do mundo:

azuis e verdes com riscos ferozes
onde a vista se afunda para depois
nos libertar. assim é, entre o céu da memória
e a erva húmida destes dias,
a árvore da minha infância.


Renata Correia Botelho, Small Song,
2.ª ed., Lisboa: Alambique, 2015