quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

C de Começar o dia com um livro novo (XXIII)


Na manhã em que me levantei para começar este livro tossi. Algo estava a sair-me da garganta, a estrangular-me. Rasguei o cordão que o retinha e arranquei-o. Voltei para a cama e disse: Acabo de cuspir o coração.
 
Existe um instrumento chamado quena que é feito de ossos humanos. Tem origem no culto que um índio dedicou à sua amante. Quando ela morreu ele fez dos seus ossos uma flauta. A quena tem um som mais penetrante, mais persistente do que a flauta vulgar.
 
Aqueles que escrevem sabem o processo. Pensei nisto enquanto cuspia o coração.
 
Só que eu não estou à espera da morte do meu amor.
 
 
 
Anaïs Nin, A Casa do Incesto,
trad. Isabel Hub Faria, 2ª ed.,
Lisboa: Assírio & Alvim, 1984

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

F de "Ferrugem e osso" (II)



"[...] d'un rouge pareil
à son coeur invisible."

Jean Follain

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

L de Lost in translation (II)

NUMA BIBLIOTECA


(Versão de uma poema de Zbigniew Herbert)



Uma  rapariga loura está  inclinada sobre  um  poema. Com o  bisturi
de um  lápis  afiado  transfere as  palavras  para uma  folha  branca e
converte-as em acentos, cadências, cesuras. O lamento de um poeta
caído assemelha-se agora a uma salamandra devorada por formigas.

Quando o levámos sob o fogo das metralhadoras eu pensei que o seu
corpo ainda cálido ressuscitaria nas palavras. Agora que  vejo a morte
das palavras, sei que não há limites para o declínio. Tudo o que
deixaremos  atrás de nós sobre a terra escura serão sílabas dispersas.
Acentos sobre o pó e o nada. 



José Miguel Silva, Ulisses já não mora aqui,
Lisboa: &etc, 2002

R de Regresso ao Trabalho (XLIX)

 
IN A STATION OF THE METRO



The apparition of these faces in the crowd;
Petals on a wet, black bough.

Ezra Pound

domingo, 27 de janeiro de 2013

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

S de "Semantics won't do" - XI c


S de "Semantics won't do" - XI b


 

S de "Semantics won't do" (XI)


1988, CHET BAKER




Prometeu que tocaria My
Funny Valentine
como nunca
o fizera. E foi, também na voz,
verdade (a verdade é sempre
uma coisa muito triste;
faltavam-lhe duas semanas para morrer).


Comprei o disco quase vinte anos
depois, e só por difícil acaso
o fiz naquela cidade, com a
mesma ou nenhuma vontade de morrer,
agora que volta a dizer "Stay
little valentine" e a chuva torna
as bicicletas uma metáfora evitável,
contrária à ferrugem do que sinto.


Sim, é isso: ninguém nos espera
- e nem todos sabemos voar, sofrer,
cantar assim o desconforto.
Nada deveria ser tão triste,
até porque nada deveria ser.


Mas não me roubem, por favor, esta canção.
 
 
 
Manuel de Freitas, Jukebox 1 & 2,
Teatro de Vila Real, 2009
 
 



 

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

E de Estado da nação (III)



[Lisboa, 20/01/13]

domingo, 20 de janeiro de 2013

D de "Deve ser com certeza um sítio muito triste" _ V b





[Hoje, em Santarém - o entardecer de um dia muito longo.]

D de "Deve ser com certeza um sítio muito triste" (V)


Ouves a música do campo
e a serpente passa, o pequeno comboio
cobre linhas de silvas e a dor
de não voltar. Quatro colunas
sustêm o alpendre, uma
e outra vez a ver o casal, a ver
desabar o modo impossível
da vontade. Ouves música
no campo enquanto arrumas
na mala coisas de sentimento
e duração. Golpes de asas
voam sobre a tarde, voam
sobre ti que já só sabes
reconhecer a língua do mal
mas asas não. Prendo-me à janela
e a rede tapa a luz
de um incêndio.



Helder Moura Pereira
in  Depósito Legal N.º 23571/88, Lisboa: frenesi, 1988

P de (The) Privacy of Rain - XXVI b

P de (The) Privacy of Rain (XXVI)









[Lisboa, Abril de 2012 / Janeiro de 2013]

sábado, 19 de janeiro de 2013

P de (The) Privacy of rain (XLIII)


[...] 

Hoje é o dia dos teus anos e mais uma vez o dia dos teus anos é escuro e frio, chove no meu terraço, caem gotas de água grande ao meu lado, vou lá meter a cabeça? A chuva vai trazer-me paz e amor? A chuva vai lavar-me? Lava-me tu. Lava-me tu. 

[...]


Nuno Moura, Calendário das dificuldades diárias,
Lisboa: &etc, 2002

F de "(Une) Famille d'Arbres" - V b


POSTCARD 1 



Out of Bulgaria, the great roar of the artillery thunders,
resounds on the mountain ridges, rebounds, then ebbs into silence
while here men, beasts, wagons and imagination all steadily increase;
the road whinnies and bucks, neighing; the maned sky gallops;
and you are etternally with me, love, constant amid all the chaos,
glowing within my conscience - incandescent, intense.
Somewhere within me, dear, you abide forever -
still, motionless, mute, like an angel stunned to silence by death
or a beetle inhabiting the heart of a rotting tree.



Miklós Radnóti (1909-1944), 30 de Agosto de 1944
Trad. de Michael R. Burch



§



[...]

Radnóti’s name is usually not associated with the pronounced literary tendencies (calling it a movement, despite its profound significance for contemporary Hungarian literature, would be going much too far) of some 40 or 50 years after his murder at the hands of fascists.  Both were, however, a kind of poetry of testimony.  Radnóti bore poetic witness to his own murderous age; the poets of the late twentieth-century, in their deeply experimental and rebellious use of language, to the ‘disintegrations’ of the late Kádár era.  Yet these last poems of Radnóti’s, embodiments of physical ruin, snatched from the jaws of ruin, and their literal decomposition in his coat pocket in the mass grave at Abda seem somehow to prefigure the crisis and disintegration of language that his successors were to confront later on — that we all, to some extent, confront today.




[Obrigada, Rik]

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

F de "(Une) Famille d'Arbres" (V)



UMA ÁRVORE PARA MARINA TSVIETÁIEVA
 
 
 
Nalgum lugar do mundo espera-me uma árvore.
Só e majestosa no sopé de uma colina
ou escondida entre outras no fundo de um vale.
Não sei se as suas folhas deixam passar a luz e os pássaros,
se só dá sombra ou também algum tipo de fruta.
Se é resistente aos rigores do verão,
se um floco de neve a pode incendiar.
 
Mas guarda no seu interior uma caixa secreta.
 
O carpinteiro da funerária dorme
a sono solto e em sonhos murmura:
É preciso tirar à caixa o que lhe sobra
da árvore, arrancar-lhe a cortiça que a prende,
desatar-lhe os nós, apaziguar-lhe a seiva.
 
Mas, afinal de contas, talvez
não seja muito frondosa nem muito direita
a árvores que me espera e ainda não conheço.
Talvez, embora só tendo dois ramos,
se engane com frequência nas suas tarefas diárias
e num ramo brote um pássaro fugaz
e noutro, esquiva, esvoace uma flor.
 
Mas no seu interior cresce uma caixa para mim.
Paciente e silenciosa. Confortável e quente.
Temo que atinja por fim a minha estatura.
 
E ainda que tenhamos de nos encontrar
e reconhecer num meandro do tempo,
a caixa e eu levamos vidas contrárias:
Eu velarei para que ela durma.
Ela renascerá quando eu morrer.
 
 
Madrid: Visor, 2012
 

P de Poética (XXXVII)

 
SEGREDE É SÓ PA UM
 
 
 
Tud mar dêsse mund
tem um nome cunchid
ma êsse di meu sê nome
só mim é q'sabel

ora q'temporal te parcê
na horizonte
um tem um port
q'ta protêge-me

tud quem qui crê
conchê sê nome
um tal guardal
ao menos êsse é nha direit

mesme qui um nôme
é só palavra
nada más do qui um nome

má tem segrêd
q'é só pa um
sima tem segred
q'pa dôs é d'más

agora q'nha voz
é uvid um pouco
más um ta guardá nha alma
d'tude aquês q'ta rudiáme
e q'ta escondê pa trás dum máscra

d'stine um cata crê na d'stine
só amor ta companhame
na nha caminhe
e na cantál
nome d'nha mar t'uvid
só pa quem q'ta creditá na poesia

má tem segrêd
q'é só pa um
sima tem segred
q'pa dôs é d'más
 
 
Letra de Vasco Martins,
na voz de Herminia.
 

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

S de "Semantics won't do" (X)


[Para a Marta]

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

P de (The) Privacy of Rain (XLII)








[Lisboa, 09/01/12]

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

I de Insónia (IV)

domingo, 13 de janeiro de 2013

P de Poesia (XIII)


INVESTIDA



Teu argumento, môça, faz com que eu abandone
     os livros, o corpo a corpo com a sabedoria, e
     saia contigo, pelo sítio
aprendendo a linguagem da chuva, a passarinhagem
     irresponsável e o travo selvagem das frutas.

Teu braço me mostra o vento nas goiabeiras - as
     melhores rimas
e teu olhar descobre definitivamente o farol que em
     plena manhã
se recomenda à gratidão dos arrecifes, das canoas,
     dos penhascos e das proas.

Estou contigo. Nem Homero me levará mais
para a libertinagem da imortalidade. Aqui os clás-
     sicos se dissolvem
nos papagaios que as crianças soltaram no céu
para lutar com os albatrozes.

Sei agora, môça, que meus pés nus na areia
estão pisando o chão da Descoberta.
Já não preciso de versos para saber que estou vivo.
Estou caminhando entre as árvores sem nenhum
     compromisso. 





Lêdo Ivo, Cântico, 2ª ed. 
(com  ilustrações de Emeric Marcier, reproduzidas da 1ª ed.), 
Rio de Janeiro: Orfeu, 1969

C de Começar o dia com um livro novo (XXI)



Havia a tristeza
como método, havia
a sedução

como razão. Havia
o tempo, a língua
pegajosa do sentido
marcando em cada ruga

o desenlace. O sol
também havia
até que passe.



José Carlos Soares, O Visitante Paralelo,
Lisboa: Língua Morta, 2013

sábado, 12 de janeiro de 2013

EM SOCIEDADE



     Não me arrependo - mas só porque o arrependimento não é uma forma suficiente de desespero - do tempo em que era desconfiado, em que ainda esperava encontrar algum inimigo para vencer, alguma brecha a talhar na natureza humana, algum esconderijo sagrado. A desconfiança representava ainda uma pausa, a constatação aprazível do concluído. Um fio puxado por uma andorinha que, de asas abertas, imita a ponta da flecha engana tanto a aparência do homem como a sua realidade. O vento não vai aonde o homem o quer levar. Felizmente. Eis as fronteiras do erro, eis os cegos que se recusam a pousar o pé no degrau em falta, eis os mudos que pensam com palavras, eis os surdos que silenciam os ruídos do mundo.

     Os membros cansados, palavra de honra, não se separam facilmente. O seu desconhecimento da solidão não os impede de se entregarem a dissimuladas experiências pessoais de física divertida, migalhas do grande repouso, tantas gargalhadas minúsculas das glicínias e das acácias do cenário.  
     A fonte das virtudes não secou. Ainda há olhos belos e grandes, bem abertos para contemplar as mãos laboriosas que nunca praticaram o mal e que se aborrecem e que aborrecem toda a gente. O cálculo mais rasteiro faz com que se fechem quotidianamente estes olhos. Mas eles só privilegiam o sono para poderem mergulhar depois na contemplação das mãos laboriosas que nunca praticaram o mal e que se aborrecem e que aborrecem toda a gente. O odioso tráfico.

     Tudo isso está vivo: esse corpo paciente de insecto, esse corpo apaixonado de pássaro, esse corpo fiel de mamífero e esse corpo magro e vaidoso do monstro da minha infância, tudo isso está vivo. Só a cabeça morreu. Tive de a matar. O meu rosto já não me compreende. E não tenho outro.


Paul Eluard,  Les dessous d'une vie ou La Pyramide humaine, 1926
[Trad. ID]

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

C de Chocolate Jesus (VI)




[Para a Guida]

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

P de Poesia (XII)

 
Herman Hesse a pintar / sobre pintar:
"(…) as a poet I would not have made so much progress without painting."

E de "É assim que se faz a História. Sem palavras a mais." (XLII)



Com este desenvolvimento colossal da técnica, abateu-se uma nova espécie de pobreza sobre os homens [...]. De que vale hoje em dia toda a herança cultural se nenhuma experiência nos liga a ela? A terrível confusão de estilos e concepções do mundo no século passado mostrou-nos o que provocam a hipocrisia ou a deslealdade nesta matéria, com tamanha clareza que só podemos considerar digna de respeito a confissão da nossa miséria. Confessemos, pois: esta pobreza da experiência não é apenas uma pobreza das experiências privadas, mas uma pobreza das experiências humanas. Será uma espécie de nova barbárie? Com efeito. Afirmamo-lo de modo a introduzir um novo conceito, uma visão positiva da barbárie. Afinal, esta pobreza de experiências leva o bárbaro a fazer o quê? Leva-o a querer recomeçar as coisas, a avançar, a desenvencilhar-se com pouco, a construir com o pouco que tem e sem olhar nem para a direita nem para a esquerda [...]. Tornámo-nos pobres. Fomos sacrificando a herança da humanidade, e muitas vezes empenhámo-la por uma centésima parte do seu valor, só para recebermos em troca a moeda miúda do "actual" [...] A humanidade prepara-se para sobreviver, se necessário, à cultura. E o mais importante é que o faz rindo. É possível que, de vez em quando, esse riso tenha um som bárbaro. Ainda bem. Talvez o indivíduo possa ocasionalmente oferecer um pouco de humanidade às massas, que a devolverão um dia com os juros do capital e os juros dos juros.



Walter Benjamin, Experiência e pobreza
citado em
Tiqqun, Théorie du Bloom, Paris: La Fabrique éditions, 2000
 

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

S de "Semantics won't do" (IX)





Piantame de mi lado todas esas macanas,
Ya no quiero más libros, ya me
esgunfian los versos
No me hablés de percantas ni de
amigos ni nada
La vida me ha sobao como a un
matungo viejo


Paro el coche, me planto como un
potro en la zanja
y así mishio y más solo que uno que
anda fulero
desde hoy no caso viaje ni pa' matarme
el hambre
¿Esto es vivir? Piantame de mi lado
esos versos


Y en el bulín mistongo me pasaré las
horas
mascándome esta yeta que me sigue
No quiero saber de nada, nada
Si vieras como estoy de cansao, como
estoy de fulero


La percanta que engrupe, los amigos
que gozan
con el sopapo que uno recibe por
mamerto
La familia que bronca y el buyón que
escasea
¿Esto es vivir? Piantame de mi lado
esos versos,


Piantame los papeles, los libros, la
linyera
Piantá y dejame solo como a un macho
fulero
Paro el coche, me planto, tengo una
fiaca hermano
La vida me ha sobao como a un
matungo viejo

B de Brincar com ossinhos (IX)


[Coimbra, Dezembro 2011]

T de Tempo Sem Tempo (XV)

A MECÂNICA DAS COISAS



Do deserto vem o primeiro barco. É
o próprio vento. Por isso houve uma guerra
ninguém se lembra erguida torre de ventos
para nada serve.

O frio anda à sua volta não tem chão
para os seus pés. Imagem trazendo do verão
a negro e branco o sonho a sombra
dos plátanos reduzindo a rosa

à superfície do mar ocidental.
Parte única. O que aconteceu nestes três anos
ocupando um quarto desta terra entre
nuvens e ilhas cada um de nós

elemento conquistado pelo mar
pelo ar pelos livros mais os erros. É
como um sono é uma perda de tempo
cada manhã

o mesmo murmúrio a terra dura e fértil sem
florestas e campos sem montanhas sem flores
as suas casas solidez dos lugares
levando da beira mar pela distância

pequena ilha querendo a todo o instante a
ilha vizinha
o trabalho o que vai ficar a um canto
dentro de nós.

É o resumido mundo o destino
o fundo dos bolsos este país dos outros.
Estás no limite de exigir a noite mais 
escura.

Tudo tinha desaparecido.
Um candeeiro iluminava os arbustos.
Seriam já as horas da manhã.


João Miguel Fernandes Jorge
in Sobre o mar e a casa, com  pinturas de Pedro Calapez,
Lisboa: Europália, 1991

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

S de Sítio

 
[Nazaré, Novembro 2012]
 

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

E de "É assim que se faz a História. Sem palavras a mais." (XLI)


DURANTE A INVENÇÃO DO FOGO


para Julián



[…]



III

Queimar. Da pele
aos ossos. Dos ossos
ao tutano. Dele
à célula indistinta entre ser e não.

Não pela luz,
pela carícia suja da cinza.
Lamber a cinza
para aprender o vermelho.

O amigo
quer publicar o fogo,
libertá-lo
da cinza acumulada
a que chamamos país.

Frio o coração da chama.

Publicado,
devolver-se-ia aos ares
e tornaria a ser inédito.

O amigo publica o país
que sob a cinza
continua inédito.

Queimar.
Até que volte a ser cru.



[...]


Pádua Fernandes, Cálcio,
Lisboa: Averno, 2012

sábado, 5 de janeiro de 2013

P de Poética (XXXVI)

BICICLETA
 


Lá vai a bicicleta do poeta em direcção
ao símbolo, por um dia de verão
exemplar. De pulmões às costas e bico
no ar, o poeta pernalta dá à pata
nos pedais. Uma grande memória, os sinais
dos dias sobrenaturais e a história
secreta da bicicleta. O símbolo é simples.
Os êmbolos do coração ao ritmo dos pedais –
lá vai o poeta em direcção aos seus
sinais. Dá à pata
como os outros animais.


O sol é branco, as flores legítimas, o amor
confuso. A vida é para sempre tenebrosa.
Entre as rimas e o suor, aparece e des
aparece uma rosa. No dia de verão,
violenta, a fantasia esquece. Entre
o nascimento e a morte, o movimento da rosa floresce
sabiamente. E a bicicleta ultrapassa
o milagre. O poeta aperta o volante e derrapa
no instante da graça.


De pulmões às costas, a vida é para sempre
tenebrosa. A pata do poeta
mal ousa agora pedalar. No meio do ar
distrai-se a flor perdida. A vida é curta.
Puta de vida subdesenvolvida.
O bico do poeta corre os pontos cardeais.
O sol é branco, o campo plano, a morte
certa. Não há sombra de sinais.
E o poeta dá à pata como os outros animais.


Se a noite cai agora sobre a rosa passada,
e o dia de verão se recolhe
ao seu nada, e a única direcção é a própria noite
achada? De pulmões às costas, a vida
é tenebrosa. Morte é transfiguração,
pela imagem de uma rosa. E o poeta pernalta
de rosa interior dá à pata nos pedais
da confusão do amor.
Pela noite secreta dos caminhos iguais,
o poeta dá à pata como os outros animais.


Se o sul é para trás e o norte é para o lado,
é para sempre a morte.
Agarrado ao volante e pulmões às costas
como um pneu furado,
o poeta pedala o coração transfigurado.
Na memória mais antiga a direcção da morte
é a mesma do amor. E o poeta,
afinal mais mortal do que os outros animais,
dá à pata nos pedais para um verão interior.


 
Herberto Helder
in Antologia de Poesia Portuguesa 1960-1990, org. e introd. de Luís Miguel Nava,
Lisboa / Leuven: Caminho / Leuvense Schrijversaktie, 1991
 

R de Rezar na era da técnica - V b



Aart Klein, "Philips Headquarters under construction", Eindhoven, 1961
 

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

F de Fazer Fotografia (LXXIV)

PEQUENO FORMATO
(a partir de fotografias de Dario Gonçalves)



[...]



3.

Saio da janela:
a luz é difícil,
a palavra é difícil,
viver
é difícil
com a manhã vacilante
na pupila.



[...]


Eugénio de Andrade
in Hífen n.º3, Porto, Outubro de 1988 

V de Vício (X)

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

J de (O) Jardim e a Casa - VIII b


Na primeira noite do primeiro dia do ano.

R de Regresso ao Trabalho (XLVII)

O MADRUGADOR
Também hoje, às oito menos vinte
como de costume, espera que saias de casa
e entres no dia e sua rotina - a semana -.
Não sabes quem é, mas tens uma ideia.
É o que derrama óleo numa curva
muito apertada do inverno antes de chegares,
o que ontem votou a favor da Lei da Gravidade
e hoje ta lança, com um vaso, do quinto andar.
É o que combina contigo sob a árvore da tempestade
quando o céu se rasga como um pálio,
o que arranja os futuros imperfeitos,
o que tem a sua época alta em cada um de novembro,
o que redige os guiões para que o acaso os leia.
Estes são as suas ocupações e outras piores.
Mas também algumas vezes, poucas,
se estiver de bom humor vai ditar-te ao ouvido
o nome de um cavalo no hipódromo,
arranjar-te às escondidas tanto um encontro
como uma mota velha, dar-te tudo
mesmo que no fim te tire mais: a vida.
Não sabes que rosto te reserva hoje,
se esta manhã te amaldiçoa ou sorri.
O que guarda para ti na sua mão fechada,
o que te lançará de repente à cara:
se uma salva de arroz ou um punhado de terra.
Se te coroará de urtigas ou de louros.
Mas espera-te e não conseguirás escapar-lhe.
Mas precede-te e não poderás ultrapassá-lo:
por muito que madrugues, o teu destino
levanta-se sempre antes de ti.
Madrid: Visor, 2012

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

P de "Primavera, Verão, Outono, Inverno e... Primavera"

 
[Santarém, 30/12/12]
 
 
 
  
[Sintra, 14/10/12]
 
 
 
 
[São Miguel, 24/08/12]
  

D de "deve ser/ com certeza um sítio muito triste" - IV b

Perguntas quem acompanha o tempo em nosso rosto,
quem espera o peso do sangue em nossos olhos, o ritmo
dia a dia pedra de nossos membros, o verão que não
mudará a nossa casa, a violência que espalhará
fumo no fogo das nossas máscaras, tudo isto,
a navalha do meu corpo, a corrente da praia
que tanto reconhecias, perguntas o caminho que
ousei desde menino, que se gravou em minhas mãos
e as faz tremer tristes e diferentes.
Quem acompanha a dor que escolhemos, o espaço que
ocupamos, a maneira de dizer coração,
a imagem quebrada de uma igreja,
o canteiro do jardim, lá atrás, muito lá detrás
vens perguntando quem acompanha o nosso rosto,
ele, ele que não amou ninguém, que não amou ninguém.



João Miguel Fernandes Jorge, Sobre o mar e a casa,
com pinturas de Pedro Calapez,
Lisboa: Europália, 1991

terça-feira, 1 de janeiro de 2013