terça-feira, 30 de dezembro de 2014

P de Perda de Inventário



[ID, Santarém, 26 de Dezembro de 2014]



AS CADEIRAS EM QUE NINGUÉM SE SENTA


Vêem-se em varandas e em relvados
mesmo à beira do lago,
geralmente dispostas em pares indicando que um casal

se poderá sentar ali e olhar para
a água ou para as grandes árvores frondosas.
O problema é que nunca se vê ninguém

sentado nessas cadeiras abandonadas
embora a dada altura deva ter parecido
um bom lugar para parar e não fazer nada por um momento.

Às vezes há uma pequena mesa
entre as cadeiras onde ninguém
deixou um copo pousado ou um livro com a capa para baixo.

Posso não ter nada com isso,
mas suponhamos haver um dia
em que todos os que colocaram essas cadeiras vagas

numa varanda ou num cais se sentariam nelas
nem que fosse para se lembrarem
daquilo que achavam que valia a pena

ser contemplado das duas cadeiras
lado a lado com uma mesa pelo meio.
As nuvens estariam altas e imponentes nesse dia.

A mulher descola o olhar do seu livro.
O homem toma um gole da sua bebida.
E ouve-se apenas o som do seu olhar,

o marulhar da água do lago, e o canto de um pássaro
depois de outro, gritos de alegria ou de aflição —
o tempo vai passando enquanto se percebe qual.


Billy Collins, Amor Universal,
trad. Ricardo Marques, Lisboa: Averno, 2014





sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

E de Encontro


2.


para a Inês


Encontraram-se
à margem dos seus deslocamentos,
duas figuras capazes de existir e morrer.
Ali,
somados ao lugar que os inventou,
foram peremptórios em reconhecer
a falência da realidade, o que só os tornou
ainda mais coesos.
Sobrepunham-se de tal forma
que os trâmites da experiência se viam instituídos
pelos seus próprios olhos.
Um tocou o outro,
a sensação de se propagarem como
âncoras debaixo de água. Tudo assim lento,
confirmado pela respiração.
Se ainda houvesse ruas,
julgaríamos que era de noite,
que chuviscava,
que tinham roupa um para o outro.
Sentiam-se emergir de um equívoco, alçados
pelo lucro do desejo.
Cruzariam a própria sombra para jurarem isso mesmo:
que existiam, que haveriam de morrer.
Que se tinham encontrado.


 
Vasco Gato, Napule,
Lisboa: Tea For One, 2011

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

C de Cidades Invisíveis


CHÃO ANTIGO


para o António Manuel Couto Viana


É pena que já não existam
esses lugares imundos – puros, quero eu
dizer – onde a morte entrava
sem ter de pedir licença.
Lugares onde eram por igual sinceros
o sono, o vómito ou a sombra de um abraço
(Mayakovsky e Céline tinham a mesma importância
e a sorte de não serem futebolistas).

É pena que já não possamos
comemorar no chão a derrota
do corpo pela manhã. Ao lavarem
os copos, da última vez, houve duas
ou três gerações que se partiram.
Talvez eu pertencesse a uma delas – mas
isso, ao poema, importa muito pouco.

Há um lugar que escreve sobre
a ausência de todos os lugares.
Tonéis de vários tamanhos
onde inscrevi, por distracção,
o único nome verdadeiro.
Estou a falar, naturalmente,
de tabernas.

Mas talvez não seja apenas isso.


Manuel de Freitas, A Flor dos Terramotos,
com capa de Olímpio Ferreira a partir de fotografia de Sérgio Eloy,
Lisboa: Averno, 2005




[ID, 'Cidades invisíveis', 06/013]

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

E de Espera (XXXIX)


POR MUITO QUE LEIAS NOVALIS


Ouro, incenso e mirra.
Por muito que leias Novalis
não vês tornar-se mais poética
nem mais verdadeira
a tua vida. No fundo,
só querias guardar ciosamente
(ias escrever religiosamente) a luz
que dezembro te oferece.

Ouro, incenso e mirra.
E certos direitos duramente conquistados.
O direito de impregnar na pele
a cólera das crianças,
o direito às cavidades irrevogáveis
da tua garganta,
o direito de estenderes na corda
a roupa viva dos dias,
e o de ensopares, na côdea,
os restos de gordura do prato,
escassos poderes, toda a luz
que dezembro te oferece.

Ouro, incenso e mirra
a luz que dezembro te oferece
começa logo a desaparecer.
E, por poucas que sejam, estarão sempre a mais
as palavras deste poema.


LUÍS FILIPE PARRADO
in Merry Little Christmas
Lisboa: Averno, 24 de Dezembro de 2012






[ID, 'a luz que dezembro te oferece', 12/014]

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

C de Carrosséis (V)



[ID, Feira Popular, 014]



CARROSSEL


Não enxergas. Quer dizer, olhas para isto e não vês
nada. Em rigor a manhã só desperta com o gesto
de um miúdo. Estender o braço e fazer pontaria.
Há quanto tempo está ali, a observar-te?

À volta de toda a praça, o grande carrossel gira,
o grande ciclo da vida, a morte e o renascimento.
Vozes desconhecidas ecoam por todo o lado, palavras
que se transmitem de uma geração para outra.

Pois bem, o balanço do mar largo continua.
Não te deixes enganar pela harmonia da calçada.
Hoje é dia das mentiras, és capaz de ter razão.


Vítor Nogueira, Mar Largo,
Lisboa: &etc, 2009

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

J de "Jardins sous la pluie" (III)





SONETO PARA CESÁRIO


Se te encontrasse, agora, na paisagem 
nocturna dos fantasmas da cidade, 
contava-te dos nossos pobres versos 
no teu rasto de sombra e claridade. 

Contava-te do frio que há em medir 
a distância entre as mãos e as estrelas, 
com lágrimas de pedra nos sapatos 
e um cansaço impossível de escondê-las. 

Contava-te — sei lá! — desta rotina 
de embalarmos a morte nas paredes, 
de tecermos o destino nas valetas... 

Duma história de luas e de esquinas, 
com retratos e flores da madrugada 
a boiarem na água das sarjetas. 


DINIS MACHADO





[ID, 'Pelos caminhos da manhã', 01/013]

E de Espera (XXVII) - 3.º Domingo de Advento



Humphrey Bogart e Lauren Bacall
[Delmer Daves, Dark Passage, 1947]

domingo, 14 de dezembro de 2014

M de "My house, I say" (III)





ANCORADOURO
  
Às vezes acordamos felizes. A casa
está sossegada, o quarto
dá para um jardim com as cantarias
caídas e árvores altas e muros de musgo.
O burel das cortinas antepara o céu
opaco sobre prédios urbanos.
O universo, submisso, parece disposto
para proteger; acolhe na manhã
as fachadas com os andares de três janelas,
de duas, de uma apenas; termina
em triângulos difusos na neblina.
O aquecimento irradia dos tubos, a chuva
acaricia os barcos parados, um homem com vara
debruça-se para retirar detritos.
Bandos de pássaros, brandos ventos, tudo pousado.
Abro a blindagem do quarto e ouço
os tijolos, a tinta, as escadas, o corrimão
a sangrar.
JOAQUIM MANUEL MAGALHÃES
in Sloten, Lisboa: Europália, 1991




[ID, 'My house, I say', 03/014]

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

O de "O mundo está escuro: ilumina-o." (XXVI)


"We are all in the gutter, 
but some of us are looking at the stars."

OSCAR WILDE



[Lisboa, 07/12/12]

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

E de "E ando na vida à procura / Duma noite menos escura" (V)


NOCTURNO


Meia-noite em Alicante. Da varanda do meu hotel da Calle Mayor, na estreita franja negra que formam, quase se tocando, as cornijas, avisto duas gaivotas que flutuam como farrapos de linho deslizando pelo firmamento.
Uma anémica estrela tirita, solitária e desgraçada, na abóbada do céu.
Pela rua passa um tipo escrevendo uma mensagem num telemóvel. Acabo o cigarro e entro no quarto. Junto da cama, um cartaz anuncia em inglês:
"Há algo melhor do que tornar realidade os seus sonhos. Tornar realidade os dos outros...".
A poesia no século XXI.


Roger Wolfe, Tiempos Muertos,
Barcelona: Huacanamo, 2009

[Trad. ID]




"[...]

Não sei. O amor prevalece. E tem,
como as palavras, uma espécie de evidência física.
Ontem - escrevo-o em Coimbra,
numa fria varanda de hotel - poderia ter sido 
uma das noites mais felizes da minha vida.

[...]"


Manuel de Freitas, Ubi Sunt,
Lisboa: Averno, 2014




[Fotografias: ID, Coimbra, 11/014]

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

C de Carrosséis (XV)


PERDA DE INVENTÁRIO


Sempre à mesma hora
a morte, e não lhe fixei
ainda o negro subindo
de veludo pela sombra,
pisando a carne.

Talvez alguns sinais:
um céu indigesto,
os pés disformes de todos 
os anjos para não saberem
regressar à terra;
a estátua mais triste
da cidade, tão triste
que a avenida parece
prometer, ao fundo, 
um circo já desfeito. 

Só um mendigo lhe
deixou o seu corpo
por reclamar - o corpo
mais anónimo da cidade - 
sob a espera de lona molhada
e o embalo surdo de um Bach
de papelão e cobre miúdo
para solista sem pernas,
esquecido entretanto de
como regressar à alegria. 

Nada pousa, em horas assim,
o suficiente para ser,
por mais que insistamos
em atravessar contra-corrente
as ondas quebradas na calçada,
os sentidos trocados da vida.
E sente-se a amargura,
mesmo de costas voltadas, 
como o brilho de uma pérola por
entre as malhas indiferentes da luva.


Inês Dias, Da Capo,
Lisboa: Averno, 2014



[Lisboa, 25/11/12]

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

L de (A) Luz da Sombra (XLII)


III


Isto ocorre-me a partir desta observação: nós ainda pintamos os homens sobre fundo dourado, como os primitivos. Detêm-se frente ao indeterminado. Por vezes dourado, por vezes cinza. Às vezes dentro da luz e, muitas vezes, por trás deles, com uma insondável escuridão. 


Rainer Maria Rilke, Notas sobre a melodia das coisas,
trad. Sandra Filipe, Lisboa: Averno, 2011






AMOR


O rapaz na extremidade da carruagem
não parava de olhar para trás
como se estivesse com medo ou à espera de alguém

e, em seguida, ela apareceu na porta de vidro
da carruagem seguinte e ele levantou-se,
abriu a porta e deixou-a entrar

e ela entrou na carruagem levando consigo
uma grande caixa preta
na forma inconfundível de um violoncelo.

Ela parecia um anjo com uma testa alta
e olhos sombrios e os cabelos
estavam presos atrás do pescoço com um laço preto.

E por causa de tudo isso,
ele parecia um pouco estranho
na sua felicidade em vê-la,

enquanto ela estava simplesmente ali,
perfeitamente viva como uma criatura
com um rosto suave que tocava violoncelo.

E a razão pela qual estou a escrever isto
na parte de trás de um envelope
agora que eles deixaram o comboio juntos

é dizer-vos que, quando ela se virou
para colocar o grande e delicado violoncelo
na bagageira superior,

vi-o a olhar para ela
e para o que ela estava a fazer
da mesma forma que os olhos dos santos são pintados

quando estão a olhar para Deus
quando ele está a fazer algo de extraordinário,
algo que o identifica como Deus.


Billy Collins, Amor Universal,
trad. Ricardo Marques, Lisboa: Averno, 2014

[Imagem: Giotto]

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

P de Poética (LIV)


 DIQUE


A minha mãe chama-me,
um som familiar, de duas notas,
que atravessa os campos
e me encontra aqui
de joelhos num regato,
os braços metidos em lama até aos cotovelos.

Regresso
e tento explicar
o que estive a fazer este tempo todo
tão longe de casa.
"A fazer diques?", vai ela perguntar.
"Ou a fazer poemas sobre fazer diques?"


Hugo Williams, Última Semana, 
trad. Pedro Mexia, 
Lisboa: Edições Tinta-da-china, 2014

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

U de "um homem pode o seu coração" - II c


AN ARUNDEL TOMB




Side by side, their faces blurred,
The earl and countess lie in stone,
Their proper habits vaguely shown
As jointed armour, stiffened pleat,
And that faint hint of the absurd—
The little dogs under their feet.

Such plainness of the pre-baroque  
Hardly involves the eye, until
It meets his left-hand gauntlet, still
Clasped empty in the other; and
One sees, with a sharp tender shock,
His hand withdrawn, holding her hand.

They would not think to lie so long.
Such faithfulness in effigy
Was just a detail friends would see:
A sculptor’s sweet commissioned grace
Thrown off in helping to prolong
The Latin names around the base.

They would not guess how early in
Their supine stationary voyage
The air would change to soundless damage,
Turn the old tenantry away;
How soon succeeding eyes begin
To look, not read. Rigidly they

Persisted, linked, through lengths and breadths
Of time. Snow fell, undated. Light
Each summer thronged the glass. A bright
Litter of birdcalls strewed the same
Bone-riddled ground. And up the paths
The endless altered people came,

Washing at their identity.
Now, helpless in the hollow of
An unarmorial age, a trough
Of smoke in slow suspended skeins
Above their scrap of history,
Only an attitude remains:

Time has transfigured them into
Untruth. The stone fidelity
They hardly meant has come to be
Their final blazon, and to prove
Our almost-instinct almost true:
What will survive of us is love.




PHILIP LARKIN
[Fotografias: ID, 03/013]

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

U de "um homem pode o seu coração" - II b


2


Gosto dos teus sinais pela minha casa. O livro de Caspar Friedrich com a capa voltada para cima. O afia-lápis apoiado na face menor como se a desafiar a queda, posição em que nunca imaginei se pudesse equilibrar. O brinco que perdeste e só encontraste o minúsculo fecho que teimei guardar, embora de nada servisse. Nele deponho a alegria de o vir a encontrar e lembrar estas noites de uma felicidade suave, quase invisível. Ficava-te bem esse brinco contra o cabelo curto. Ficava-te bem o sorriso abrigado nos olhos tristes. Toda a noite te falei da morte e tu ouviste-me. Não te afastaste em passos leves, como estou habituado. Tão pouco me refutaste, com medo do que ouvirias. Toda a noite te falei da morte e tu deixaste-me estes sinais de vida. A maior riqueza que me poderias ter legado. Salvaste-me e não sabias.


Jorge Roque, Nu contra nu,
Lisboa: Averno, 2014




[ID, 'Parallel Walks', Julho 013]

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

E de Espera (XXXVI)


AO AMANHECER


As lágrimas não sabem
o que dizem, deixam-se cair
em turvos argumentos,
lembram-se de coisas.
Quase nos estragam as bebidas.

Ao fim de três whiskies,
abres uma porta
e tudo se aclara.
As memórias, os cadernos,
os aprestos do negrume,
ficaram para trás.

Agora já conheces 
os fósforos que tens,
abriga-os da chuva de dezembro.
Quem sabe que cigarros
estarão à tua espera.


José Miguel Silva
in Poetas Sem Qualidades, Lisboa: Averno, 2002

sábado, 29 de novembro de 2014

V de Vício - V b


"[...]

Mas eu -
disponho três rosas num vaso chinês:
uma rósea,
outra vermelha,
e outra amarela.
E trabalho a sua disposição.
E então sento-me numa janela virada a sul
e saboreio um vinho clarete com uma pitada de cicuta,
e penso nas noites de Inverno,
e nos ratos selvagens que várias vezes cruzarão
o local que será a minha sepultura."


Amy Lowell, Não eram rosas,
trad. Ricardo Marques,
Lisboa: Língua Morta, 2012




[ID, 'God is in the details', Londres 014]

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

A de "até que os fios do coração" (XVII)


"[...]
mora um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas sou inteligente, só o deixo sair
por vezes, à noite
quando todos dormem.
e digo, sei que estás aí,
não estejas triste.
depois coloco-o de volta
mas ele canta suavemente
não o deixo morrer
e adormecemos juntos
assim
com o nosso
pacto secreto
[...]"




Charles Bukowski
traduzido por Fábio Neves Marcelino e ilustrado por Débora Figueiredo
in Fanzine ignota 1, Novembro de 2014

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

R de Regresso ao Trabalho (XLVIII)




ALFONSINA Y EL MAR


Por la blanda arena
Que lame el mar
Su pequeña huella
No vuelve más
Un sendero solo
De pena y silencio llegó
Hasta el agua profunda
Un sendero solo
De penas mudas llegó
Hasta la espuma.

Sabe Dios qué angustia
Te acompañó
Qué dolores viejos
Calló tu voz
Para recostarte
Arrullada en el canto
De las caracolas marinas
La canción que canta
En el fondo oscuro del mar
La caracola.

Te vas Alfonsina
Con tu soledad
¿Qué poemas nuevos
Fuíste a buscar?
Una voz antigüa
De viento y de sal
Te requiebra el alma
Y la está llevando
Y te vas hacia allá
Como en sueños
Dormida, Alfonsina
Vestida de mar.

Cinco sirenitas
Te llevarán
Por caminos de algas
Y de coral
Y fosforescentes
Caballos marinos harán
Una ronda a tu lado
Y los habitantes
Del agua van a jugar
Pronto a tu lado.

Bájame la lámpara
Un poco más
Déjame que duerma
Nodriza, en paz
Y si llama él
No le digas que estoy
Dile que Alfonsina no vuelve
Y si llama él
No le digas nunca que estoy
Di que me he ido.

Te vas Alfonsina
Con tu soledad
¿Qué poemas nuevos
Fueste a buscar?
Una voz antigua
De viento y de sal
Te requiebra el alma
Y la está llevando
Y te vas hacia allá
Como en sueños
Dormida, Alfonsina
Vestida de mar.




R de Regresso ao Trabalho - XLVIII b


ALFONSINA STORNI ATIRA-SE AO OCEANO


"E sobre a minha cabeça
ardem, no crepúsculo,
as eriçadas pontas do mar"
A. S.



Enquanto saem do mar ou do Tempo as amibas,
os caranguejos pré-históricos e os grandes répteis,
chiantes e lentos como tanques de guerra;
enquanto sai Pizarro com os seus homens e cavalos;
e emerge Ursula Andress, o seu biquini eléctrico e louro
como uma flor carnívora que se colasse ao tacto;
   
enquanto saem do mar a Vénus de Boticelli, e Crusoé,
e o Nautilus amarelo dos Beatles, e na praia
vêm encalhar baleias e réstias morenas de raparigas
que tomam sol e mate e depois são tomadas por outros;
enquanto emergem do abismo os icebergues cariados do diabo
e entre eles flutua a vida, esse draga-minas velho e escangalhado;
 
enquanto o mar transborda do mar no meio do estrondo
e o Sumo Ponto já nem ouve os seus próprios pensamentos,
e na praia do cenário já não cabemos todos,
porque todos tropeçamos em todos, e andamos a esbarrar
na vida e nas suas tramóias e no adereço que são as palavras;
   
eu regresso sem nada e em silêncio a este oceano, hoje laranja
e tépido como o líquido amniótico que banhava as minhas primeiras sestas.
Sabem como gosto de dar uma espreitadela aos bastidores.
Deixo-vos com o vosso desembarque diário na Normandia.
Não me acordem até o espectáculo e o mundo acabarem.


Jesús Jiménez Domínguez, Frecuencias,
Madrid: Visor, 2012
[Trad. ID]

domingo, 23 de novembro de 2014

V de Viagem no Outono




Coimbra, 23/11/014



quarta-feira, 19 de novembro de 2014

U de "um homem pode o seu coração" (III)


PEQUENOS CRIMES ENTRE AMIGOS


Se um dia me pedires,
juro que te empresto
o meu coração, tal como
guardei na boca o pequeno deus
que te trazia tão curioso.
A sério. Deixo-te tocar nele,
sentir-lhe o peso, atirá-lo
contra a parede para depois
o apanhares e retirares a pele
de pêssego demasiado maduro.

Podes até queimá-lo -
com cuidado, por favor -
quando estiver mais frio;
ou enterrar os restos debaixo
das estrelícias, de propósito
por saberes que não as suporto.
Em troca, promete-me apenas
que depois me deixas fugir
para saber como é isso de
passar o resto da vida desembaraçada
finalmente desse peso morto.


Inês Dias, Da Capo,
Lisboa: Averno, 2014




[Detalhe de Francisco Zurbarán / 1655]

terça-feira, 18 de novembro de 2014

U de "um homem pode o seu coração" (II)


SEGUNDA AUSÊNCIA DE MADRID


aqui estamos, sonho, a caminho.
um punho plantado ou uma árvore a descoberto
com o sabor de um longo passado (o que é um passado?)
ruminando saliva pesada, olhando fixamente
as acrobacias mortais

um homem pode o seu coração

aqui estamos, sonho,
aqui estamos, boneca de papel,
cigarro, coração transcorrendo
igual a uma núvem
tenho por referência um válido herói
ou a pedra ligeiramente solta
na espessa parede

o homem pode o seu coração:
o que tem a verdade - a viva ou se assemelhe
a que tem a lua indique a ilha
ou seja o seu limite


Manuel de Castro (17 de Novembro de 1934 - 1971)
in Paralelo W, edição de autor, 1958




Josef Sudek

domingo, 16 de novembro de 2014

F de Família


LAPINHA


Para a Lorena Correia Botelho


Às 21h25 a ilha fecha,
o último pássaro metálico
deixando para trás os portões
encerrados das lagoas.
É um tempo de aranhas
esquecidas das teias, aves
suspensas no voo, amigos
que invocam em silêncio as estações
e recordam ainda a Criação,
camada por camada.

Sobre os homens desce então
uma redoma de nuvens, que a estrela
única vem selar. Cada um risca
as fronteiras do sonho com sebes
de hortênsias ou muros de basalto,
esperando depois que as três
voltas do milhafre não o surpreendam
entre as espigas altas do mundo.

E o medo torna-se subitamente
navegável, mar de minúsculas
e carnudas conchas estendido
a nossos pés, para que possamos
sempre caminhar sobre
as águas.


Inês Dias, Da Capo,
Lisboa: Averno, 2014




[Detalhe de uma lapinha feita por Lorena Correia Botelho - um poema.]

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

P de Postais (VII)


DORMIR NO TECTO


É tão calmo o tecto!
É a Place de la Concorde.
O pequeno lustre de cristal
está apagado, a fonte está às escuras.
Não há vivalma no parque.

Mais abaixo, onde o papel de parede se descolou,
o Jardin des Plantes tem os portões fechados.
Aquelas fotografias são animais.
A vegetação e as flores poderosas sussurram;
sob as folhas os insectos escavam.

Temos de passar sob o papel de parede
para encontrar o insecto-gladiador,
lutar com uma rede e um tridente,
e deixar a fonte e a praça
Mas oh, se pudéssemos dormir ali em cima...


- ELIZABETH BISHOP
[Trad. Inês Dias]




[Postais oferecidos no Paralelo W]

terça-feira, 11 de novembro de 2014

A de "Ai meu amor se bastasse"


BWV 988


Talvez tudo fosse diferente
se o mundo tivesse começado tão bem
como as variações Goldberg.
Não sei, não quero saber, não faço ideia.

Eu, que da arte nada quero,
estou há vários meses sem escrever
um poema. Mas agora, aqui,
sou trespassado por uma cama
demasiado larga e pelo olhar
negro do gato que se apieda, talvez,
de mim. De uma certa ideia de mim
que acorda às quatro da manhã
para a mais ampla noção de vazio.

Felizes, mais ninguém, os que
se matam e não têm um gato
a servir fixo de remorso
nas dobras sujas dos lençóis.
Esses, apenas, que não procuram
de rastos a certeza de outro dia.

O amor? Talvez, quando um cadáver
se recria e afaga penosamente
a morte de que de uma maneira ou
de outra se morre. Quem me dera ser
menos realista, menos real,
menos permeável ao desgosto.
Mas a verdade é esta: partiste
a meio da noite, fodemos pouco e mal
e quando a janela me guilhotinou
já um táxi te levava
para longes terras da cidade em pânico.

É tudo – sabes? – tão dolorosamente simples.
A mão que não quer esperar-me,
o rumor sórdido dos bares,
a certeza de que a vida, a vida,
não deveria ser exactamente assim.

Reúno, numa espécie de voz,
esses estilhaços. Sei que não vale
a pena, sempre o soube.
Há os que se despedem e os que não.
E, indiferentemente, progridem
as diferentes coisas. Carteiros
matinais, aviões, poetas que dão
corda à musa e escolhem
devagar o timbre da gravata.
Estão no seu direito, partilham
o bem comum, a cidadania do terror.

E eu, infelizmente, existo. Abro
outra lata de cerveja, sob
o olhar reprovador do gato. Sim,
gostava de ser felino – uma coisa
mansa, dolorosa, ao abrigo da tormenta.
Mas li demasiados livros, fumo
pelo menos três maços e não me
parece que volte a acreditar em Deus
(se nem Bach me convence, estou perdido).

E, porém, há nisto uma simplicidade
atroz. A demorada asfixia
das veias, percutindo a noite, a certeza
óbvia de que não estás aqui.
Que música, sequer, me redimiria
agora? Vou morrer assim,
de costas para os espelhos. A sabê-lo.

Deve ser isso, a dor.
O cancro da manhã infiltrando-se
pela janela, como se eu pudesse
num mundo adiado, palco já sem mim.
Ou o olhar que te viu e deixou
de ver e percebeu subitamente
que um corpo, um corpo apenas,
é matéria de desastre, pronúncia errada.

A música, claro, se tivéssemos
música, qualquer coisa assim.
Em vez disso, os órgãos acomodam-se
ao suplício dos minutos, desagregam-se.
E bastarias tu – ninguém, porque
ninguém basta. É um erro – mas gostamos
tanto – pensar que um rosto nos salvará
disto que não sabemos ser, de nós.
Esse pronome pessoal, o inferno.

E é estranho, no mínimo, que o mundo
saiba acontecer, apesar. O silêncio desta dor
devia calar o universo, dinamitar arredores.
Mas não, desiste. Desiste até de desistir.
Não será este o último poema, por mais
que o julgues ou sintas (e os versos,
para ti, foram sempre sentimentos vãos).

Acordarás sinistro, quase vertical,
para as tabernas disponíveis.
Dizem que abusas. Talvez.
Como explicar-lhes, a esta hora,
que nessa retórica gasta
comprometes a vida toda?
Nunca te leram – ou mal. E o grito
permanece incólume no susto da manhã,
nas paredes mais escuras que encontrares.

O mais estranho não é a literatura,
o solene esgar da poesia.
Mais estranho, sempre, é sobreviver
a isto, fingir que não, sorrir.

Enquanto o olhar negro negro
de um gato testemunha a tua morte
e se despede melhor do que tu
da música e dos dias e da música.

Qualquer coisa assim.


Manuel de Freitas, [Sic],
Lisboa: Assírio & Alvim, 2002

domingo, 9 de novembro de 2014

A de Amor (XXIV)


 




[...]
Nunca houve na terra um amor como o nosso.
O meu amor por ti é igual ao teu amor por mim.
O resto, batatas fritas!
Se me acontecer alguma coisa, chama a polícia e esconde o anel que te ofereci
no dia dos teus anos.


Ruy Cinatti, 75 Poemas,
com org. de Manuel de Freitas e capa de Inês Dias
Lisboa: Averno, 12 de Outubro de 2014



 




[Inês Dias, 22/02/12 - 05/03/12]

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

P de Ponto de vista




Lisboa, 5/11/014



quinta-feira, 6 de novembro de 2014

N de "No fundo, é isto" (IV)


incompreensível é a penugem dos gansos ou
a casca verde das nozes
incompreensíveis há muitos     catrefadas deles
o terrorismo financeiro com as suas claras intenções
não é um incompreensível     é por isso que
entre um ganso e um financeiro de elite
não há nada que os distinga quando pensamos em mortalidade
um financeiro de elite não tem penugem e morrerá


ABEL NEVES
in Resumo: a poesia em 2013,
Lisboa: Documenta, 2014

terça-feira, 4 de novembro de 2014

A de "até que os fios do coração" (XVI)


I.


Estamos mesmo no princípio, percebes? Como que antes de tudo.
Com mil e um sonhos para trás de nós e parados.


Rainer Maria Rilke, Notas sobre a melodia das coisas,
trad. Sandra Filipe, Lisboa: Averno, 2011




Shirley Baker (1932-2014)

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

F de Fazer Fotografia (XVI)





TUDO COISAS MORTAIS PARA A POESIA


A casa, o lume, o sono dobrado
do corpo feliz, a cesta de figos,
a curva do rio, a fotografia
no cimo do monte, a veracidade
das glicínias, o rosto da mãe,
a fava no bolo, o trunfo de copas,
o filme da tarde, a música nova,
o rasto da chuva por entre os pinheiros,
as aves que voltam, os dias que passam
perto de nós.


José Miguel Silva
in Poetas Sem Qualidades, Lisboa: Averno, 2002, p.72





[Fonte: Instant Light - Tarkovsky Polaroids, Thames & Hudson]

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

F de Frequências




"Isto anda tudo ligado"

[Lisboa, 13/10/14]



domingo, 19 de outubro de 2014

V de Vício (IX)


DEPOIS DE VOLTAR DE UMA VIAGEM DE EXPLORAÇÃO


       Na almofada a cabeça sonolenta de John Mateer
é um aquário às voltas com água veneziana
       e naquele galeão, aquele brinquedo luminoso,
ele está ao leme, de telescópio no olho,
       jurando que não consegue ver a Austrália.

E quando a sua caravela desliza Tejo adentro,
       tão colocada e cerebral como um cisne negro,
ele pede um copo de porto e um pastel de nata,
       depois recolhe ao quarto num calmo hotel de Alfama,

e sonha o sonho:
       que um dia haverá um poeta
chamado John Mateer, tal como houve uma vez,
       para além dos limites dos mapas, um monstro
chamado Austrália.


John Mateer, Namban,
trad. Andreia Sarabando, Coimbra: Medula, 2014


*


What a shock it is to discover the world is round and the areas merge and nothing separates the monsters and ourselves; that we are all whirling around in space together and there isn't even a graceful way of falling off.


Margaret Millar, Beyond This Point Are Monsters, 1970
[O título do livro vem de uma inscrição num mapa medieval.]

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

P de (Cinco Anos de) Pássaros


CORVOS DE SHINJUKU


Corvos instáveis saltitando de um saco de lixo volumoso
para outro na manhã de Shinjuku;
qual foi a minha Alma, as suas frases incompletas,
os seus corsários, desembarcando, ansiosos por recordarem
onde é que tinham enterrado o tesouro.


John Mateer, "O poeta vislumbra a sua alma", 
Este Livro Escuro, trad. Inês Dias, 
Lisboa: Averno, 2012




quinta-feira, 16 de outubro de 2014

P de "Pássaros de acaso" (IX)




Daniel Filipe, Discurso sobre a cidade,
Lisboa: Editorial Presença, 1977

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

P de Poética (XLII)



[Um anúncio de 1943]

terça-feira, 14 de outubro de 2014

T de "The days grow short" (XII)


COZINHA


Quando o Outono agarra o prédio com toda a força
e se infiltra nas paredes, começo a sentir, cada vez com mais intensidade,
a luz azulada que vem do esquentador a iluminar a cozinha. Como se
Turner paralisasse este espaço.
Com a água quente e espumosa em redor dos meus pulsos
fixo nos azulejos brancos uma sombra semelhante a duas flores
que um dia vi na berma de uma via rápida.


JOÃO MIGUEL QUEIRÓS
in Poetas Sem Qualidades, org. de Manuel de Freitas, 
capa de Sérgio Eloy e arranjo gráfico de Olímpio Ferreira, 
Lisboa: Averno, 2002

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

M de "My house, I say" (VI)


117.


Acumulaba azules, sombras
de óxido en las horas, días
en el cesto de frutas, pan
duro dentro de la panera.
La casa envejecía. Nadie
que cambiase los fluorescentes
de la cocina, que repare
el horno, el tirador, su miedo
si la noche la abandonaba
a sí misma. Con el pincel
del pintaúnas sin pintura
se arreglaba las manos. Tan
delicadas, había dicho.


- JOSÉ ÁNGEL CILLERUELO
in 'Suroeste' n.º4, 
Badajoz: Editora Regional de Extremadura e Fundación Ortega Muñoz, 2014




[ID, Santarém, Maio 014]

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

C de Corpo Santo



['God is in the details', Beja 014]



As so with that, I thought I'd take a final walk
The tide of public opinion had started to abate
The neighbours, bless them, had turned out to be all talk
I could see their frightened faces 
peering at me through the gate

I was looking for an end to this, for some kind of closure
Time moved so rapidly, I had no hope of keeping track of it
I thought of my friends who had died of exposure
And I remembered other ones 
Who had died from the lack of it

And in my best shoes I started falling forward down the street
I stopped at a church and jostled through the crowd
And love followed just behind me, panting at my feet
As the steeple tore the stomach from a lonely little cloud

Inside I sat, seeking the presence of a God
I searched through the pictures in a leather-bound book
I found a woolly lamb dozing in an issue of blood
And a gilled Jesus shivering on a fisherman's hook

Babe
It seems so long
Since you've been gone away
And I 
Just got to say
That it grows darker with the day

Back on the street I saw a great big smiling sun
It was a Good day and an Evil day and all was bright and new
And it seemed to me that most destruction was being done
By those who could not choose between the two

Amateurs, dilettantes, hacks, cowboys, clones
The streets groan with little Caesars, Napoleons and cunts
With their building blocks and their tiny plastic phones
Counting on their fingers, with crumbs down their fronts

I passed by your garden, saw you with your flowers
The Camellias, Magnolias and Azaleas so sweet
And I stood there invisible in the panicking crowds
You looked so beautiful in the rising heat

I smell smoke, see little fires bursting on the lawns
People carry on regardless, listening to their hands
Great cracks appear in the pavement, the earth yawns
Bored and disgusted, to do us down

[...]

These streets are frozen now. I come and go
Full of a longing for something I do not know
My father sits slumped in the deepening snow
As I search, in and out, above, about, below

Babe
It seems so long
Since you went away
And I
Just got to say
That it grows darker with the day