segunda-feira, 30 de junho de 2014

M de "My house, I say" (V)


HORTA


Ao domingo, justamente, a cidade está aqui,
mas não existe. Há quem fique para trás
na agitação da fuga, ocupando por exemplo
uma horta varrida pela auto-estrada.

No princípio era apenas uma hipótese
remota, um conjunto de raízes (não se sabe
o número exacto) a descer por uma rocha.
Felizmente, verde-terra e massicote,
misturados na paleta, dão um verde gracioso.

Pacotes de sementes para um jardim
podem desencadear uma avalanche. Olhai bem
para ele agora. O que vai fazer com tudo isto?
Alface, pimentos, batatas, perguntas
de resposta múltipla sobre auto-estima.

Perdida no inferno dos subúrbios,
a horta faz parte de um plano maior:
trazer o tubarão a superfície, encontrar
no viaduto uma espécie de refúgio,  conseguir
escapar à morte no centro comercial.


Vítor Nogueira,  Modo fácil de copiar uma cidade,
Lisboa: & etc, 2011





[Os primeiros produtos da horta.]

quarta-feira, 25 de junho de 2014

B de Biografia - IV c *


Coberta que fosse
de aves, ficava
num longo dizer

a rapariga. Havia misturado
um perfume a erva brava
e a canela. Nem sei

por que me lembro
do que já queima
os lábios, agora que se dobra

o coração no frio.


José Carlos Soares
in Telhados de Vidro n.º5,
Lisboa: Averno, Novembro de 2005

*

segunda-feira, 23 de junho de 2014

P de Poética (XXXIX)


1: Olhos nos olhos de todos os túneis.
2: As colinas cerúleas de Bolonha.
3: Esse jogo de sombras entre os pórticos.
4: A métrica exacta de Morandi.
5: As janelas abertas do museu.
6: Um vidro sujo frente ao Boticelli.
7: As mãos de David. A altura. O sexo.
8: O mundo inteiro e ninguém (os fantasmas).
9: Delicada aguarela: amanhecer.
0: Túneis no túnel de todos os olhos.



JOSÉ ÁNGEL CILLERUELO
[Trad. Inês Dias]

C de Criatura(s)



Giorgio Morandi


*



Emile Savitry, "Alberto Giacometti dans son atelier", c.1946

domingo, 22 de junho de 2014

R de Rezar na era da técnica (XVII)


FÁBRICA DE SONHOS


Na fábrica dos sonhos
alguém desfaz
o pão nosso de cada dia
sobre um consomé de algas,
enquanto murmura
uma oração que ninguém reza
e se transformou
na música de fundo
de um restaurante chinês
onde os grãos de arroz germinam
em cada colherada.

Já não há religiões
no menu dos domingos
e alguém pede a Deus
que ressuscite no paladar
das suas preces,
que volte a ser real
no suave traço
da caneta gasta do empregado
que anota diligentemente
cada pedido,
para que o enfeitem
com cabelo de anjo
na cozinha.


ANA MERINO
[Trad. Inês Dias]




[Fotograma de Wong Kar-Wai, Chungking Express, 1994]


sábado, 21 de junho de 2014

J de (O) Jardim e a Casa (VI)




Norman Bluhm and Frank O'Hara,
"Meet Me in the Park" (gouache on paper)
in Poem-Paintings, 1960.
© Estates of Norman Bluhm and Frank O'Hara

segunda-feira, 16 de junho de 2014

L de Ler


Cada um regressa aonde pode e ele volta sempre à cara das palavras. Como uma campânula exposta ao seu órgão de luzes procurava o sentido dos nomes, a morte percutida, a fala transformada no som da linguagem, a arte esquecida e excessiva da poesia. Num tempo neutro acordo onde brilha perdido o dia um peixe. Deu passos em volta, feridos que bastasse, disse sim, também eu se quisesse enlouquecia. Bordou páginas e páginas pelos séculos adiante, noites inteiras, entregue a quase toda a vida dessa voz em maton. Quase toda. E concluiu: meu deus, não compreendo nada. Talvez seja louco revulsivo. E meteu-se debaixo do vulcão. Aspirava a esquecer tudo, deixar que a luz viesse do princípio. Era quando morríamos entregues à febre. Alguém tocava um piano velho dentro do copo de vinho que bebia e do fundo do café apenas chegava o inverno sem sons. A viagem ao fim da noite. Tropeçou em muitos lugares, tropeços e tropeços, semáforos trocados, algumas vezes caiu, pouco. Mas nunca mais de lá saiu, do sítio certo. Nem é preciso, está tudo dito, e é definitivo. Faltava acabar a obra, o outro lado do crime. Porque foi assente: apenas o amor e as palavras são dois crimes sem perdão. E é aqui que aparecem cidades indefesas  presságios a tatuar-lhe a alma, a violentar as margens do que já tinha sido o sangue prisioneiro. É um menino musical, um grafonolinho. Fala, fala e fala. Como as crianças que têm medo no escuro e precisam de ouvir nem que seja a sua própria voz. Ela está permanentemente no escuro. Ele é um homem  que tem uma certa dificuldade em ouvir mais de dez por cento do que lhe dizem. Mesmo quando, ou sobretudo quando está a olhar nos olhos de quem fala.  De repente diz qualquer coisa, uma frase, uma palavra, e é a síntese perfeita. O acorde perfeito, já agora. De modo que, veja-se, aconteceu esta coisa um tanto apocalíptica: descobriram que se entendiam segundo as leis de uma energia desregulada - e imagina-se isto aplicado a dois corpos em movimento. Há quem lhe chame paixão, há quem diga que é onde um homem pode começar a morrer. Porque, também já se sabe, agora o combate é de vida ou de morte. O verdadeiro lado donde o crime será fatal. 


José Amaro Dionísio, O Nome do Mundo
Lisboa: Relógio D'Água, 1996

sexta-feira, 13 de junho de 2014

R de Rezar na era da técnica (XVI)




[Véspera de Santo António 014]

terça-feira, 10 de junho de 2014

P de "Portugal não é um país pequeno." (X)



[ID, Junho 013]


Muro

Embora a literatura se resuma ao gesto desesperado de um eu, ela só faz para mim sentido enquanto abertura ao outro, quer dizer, enquanto busca de um modo de acolher e expressar a condição humana. Este o meu desentendimento radical com o país da língua em que escrevo. Onde vejo mundo, aqui vê-se bairro. Onde vejo humano, aqui vê-se fulano. Onde vejo literatura, aqui vê-se grupo. Eu e o país jamais nos reconheceremos. Frente a frente, sempre o mesmo muro, a mesma violência surda, a mesma sufocação.


Jorge Roque
in Cão Celeste n.º 5, Lisboa, Maio de 2014

terça-feira, 3 de junho de 2014

E de Estudos literários comparados (V)


TERNA É A NOITE


Tender is the night
entre arquitecturas brancas
de casas com vedações intrincadas
caminhos de gravilha, suave
é a noite, uma pegada
um rangido, um passo
                                    sopra
azul e líquido o vento
da paixão civilizada
                                 algo
ficou entre as rodas de água 
na praia, uma tábua carcomida
e uma grinalda de algas

                                       vão passar
vinte anos, vinte constelações de cubos
de gelo em copos azulados, então
a harmonia da Europa consistia
num fundo de Bach
                                 e num suicídio
colectivo a cento e oitenta à hora

um alcoolizado levou consigo
o segredo do sofrimento pela impenetrabilidade 
a assepsia da água corrente
                                             e dos dentífricos
destruidores da nicotina
                                        Francis
Scott Fitzgerald, excessivamente inteligente
para engolir o mundo de cada dia
como um espesso melaço sobre as torradas.


Manuel Vázquez Montalbán
[Trad. Inês Dias]

domingo, 1 de junho de 2014

I de (A) Insustentável Leveza do Ser (III)


Post com dedicatória: 
para o Alexandre, a Ana Isabel, a Conceição, a Daniela, a Isabel, o Luis, 
a Maria, a Marta, o Manel, o Ricardo, a Rosa e o Rui.



[ID, Ribatejo / Março 014]