domingo, 29 de abril de 2018

S.T.T.L.


HOTEL ASTÓRIA, QUARTO 229


                        in memoriam


Há uma roda gigante que não pára, do outro lado do rio. Também a música ao vivo teima em continuar pela noite dentro, poluindo os arredores de Santa Clara e os lençóis inquietos onde já encontraste o sono.

*

Mas já só consigo pensar na roda pequena da vida, que ontem se deteve no corpo de um gato escuro, violentamente terno. Há ausências assim, impronunciáveis. Saber que a dor se irá tornando tolerável, que continuaremos a cumprir a breve sucessão dos dias, é tudo menos um consolo. Será, quando muito, um acréscimo de humilhação, o modo baixo como a vida nos obriga a aceitar o inaceitável. 

*

Toquei ontem, pela última vez, na cauda fria de um gato. Chamava-se, neste mundo, Barnabé.


Manuel de Freitas, Ubi Sunt,
Lisboa: Averno, 2014

terça-feira, 24 de abril de 2018

F de Flor Suficiente (XXII)



[ID, Figueira da Foz, 20/04/018]



Os milagres acontecem
a horas incertas
e nunca estou em casa
quando o carteiro passa.
Hoje, abriu a primeira flor
e eu disse é um sinal.
Olho em volta: estou só
trago esta sombra comigo.


Ana Paula Inácio
in Poetas Sem Qualidades, Lisboa: Averno, 2002

terça-feira, 17 de abril de 2018

terça-feira, 10 de abril de 2018

M de Mesa de Amigos - V c


RETRATO


Uma demora lenta nas palavras
um calor bom na palma das mãos
uma maneira de gostar das pessoas e das coisas
sem tolher movimentos ou forçar as superfícies
beber aos golinhos o café a ferver
ou o whisky chocalhado com pedrinhas de gelo
viver roçando as coisas ao de leve
sem poupar o veludo das mãos e do corpo
sem regatear o amor à flor da pele
olhar em torno de si perdida ou esperar o verão
e saber de um saber obscuro que o calor
todo o calor é de mais dentro que vem


Rui Caeiro, Livro de Afectos,
Lisboa, edição de autor, 1992

domingo, 8 de abril de 2018

H de História de amor - c



[João César Monteiro, Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço, 1970]



Um mover de olhos, brando e piedoso,
Sem ver de quê; um riso brando e honesto,
Quase forçado; um doce e humilde gesto,
De qualquer alegria duvidoso;

Um despejo quieto e vergonhoso;
Um repouso gravíssimo e modesto;
Ũa pura bondade, manifesto
Indício da alma, limpo e gracioso;

Um encolhido ousar; ũa brandura;
Um medo sem ter culpa; um ar sereno;
Um longo e obediente sofrimento;

Esta foi a celeste fermosura
Da minha Circe, e o mágico veneno
Que pôde transformar meu pensamento.


LUÍS DE CAMÕES





[João César Monteiro, A Comédia de Deus, 1995]

domingo, 1 de abril de 2018

P de Páscoa Feliz (VII)


A FLECHA NEGRA


Não digas que escrevo
para o teu desconsolo - se o dia
não serve e a noite que chega
não me traz mais nada. Já foram
mais fáceis os meses e o sono,
os livros dilectos, a luz
sobre a cama -
e as vistas
da tarde por detrás da casa: hortas
de Macedo, olivais da Páscoa.
Mas não digas que escrevo
para o teu desconsolo. Escrevo
contra o nosso, escrevo
como posso.


Rui Pires Cabral, Morada,
Lisboa, Assírio & Alvim, 2015

P de Páscoa Feliz (III)