quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

P de Poética (XXXVIII)


A PANTERA
                   
                               
                                     
Esta pantera é a minha irmã mais velha. Rugiu pela primeira vez quando eu ainda amava tudo o que me acontecia: ouvi aquele rugido como algo que me entregava o universo. Nasceu assim entre nós um certo carinho desonesto e incomparável. Ela, com essa agilíssima forma coberta de ébano cintilante, aproxima-se para me seduzir através dos seus movimentos de aço: contemplo o seu brilho hipnótico, lamentando a pobreza do meu poder, e recordo as vezes em que nos lançámos para o corredor, irmanados pelo desejo comum da aniquilação. O nosso incesto vai-se fortalecendo graças a um estilete de rancor em cujo fio sorri uma ternura desconcertante: aprendemos que o ódio é mais sensual do que a piedade.
                                      
Diz a verdade a esta gente. Diz-lhes que me protejo das tuas arranhadelas. Diz-lhes que a minha maior luxúria consiste em projectar a tua destruição. Diz-lhes que contra-ataco a toda a hora com a insuportável esperança de esmagar pouco a pouco a tua compacta agressão, a tua existência, a tua proximidade, a tua memória. Diz-lhe que me servi, contra ti, de todas as armas: as mulheres, o trabalho, a música e milhares de cigarros, os amigos e as palavras, a arte, o álcool. Vivia como a palavra socorro. Vivia em legítima defesa. Usei todas as armas contra a tua cabeça belíssima e escura, todas as armas contra o teu esplendor, todas as armas contra o desatino da tua imortalidade.
                                                
Esta pantera é a minha irmã mais velha. Vigia-me como um oceano vigia a costa e trata-me pelos meus diminutivos. Eu vigio-a como um réu de morte vigia os minutos, e chamo-lhe Tristeza à falta de um nome mais vasto e depravado.
                             
                                       
                                           
FÉLIX GRANDE, 1937 - 30/01/2014
[Trad. ID]

3 comentários:

Odracir disse...

...não consigo conter-me: - Ai, tão bom! Obrigado!

ID disse...

Obrigada eu, Ricardo. E feliz natal :)

Odracir disse...

:)Boas Festas, Inês!!