segunda-feira, 16 de junho de 2014

L de Ler


Cada um regressa aonde pode e ele volta sempre à cara das palavras. Como uma campânula exposta ao seu órgão de luzes procurava o sentido dos nomes, a morte percutida, a fala transformada no som da linguagem, a arte esquecida e excessiva da poesia. Num tempo neutro acordo onde brilha perdido o dia um peixe. Deu passos em volta, feridos que bastasse, disse sim, também eu se quisesse enlouquecia. Bordou páginas e páginas pelos séculos adiante, noites inteiras, entregue a quase toda a vida dessa voz em maton. Quase toda. E concluiu: meu deus, não compreendo nada. Talvez seja louco revulsivo. E meteu-se debaixo do vulcão. Aspirava a esquecer tudo, deixar que a luz viesse do princípio. Era quando morríamos entregues à febre. Alguém tocava um piano velho dentro do copo de vinho que bebia e do fundo do café apenas chegava o inverno sem sons. A viagem ao fim da noite. Tropeçou em muitos lugares, tropeços e tropeços, semáforos trocados, algumas vezes caiu, pouco. Mas nunca mais de lá saiu, do sítio certo. Nem é preciso, está tudo dito, e é definitivo. Faltava acabar a obra, o outro lado do crime. Porque foi assente: apenas o amor e as palavras são dois crimes sem perdão. E é aqui que aparecem cidades indefesas  presságios a tatuar-lhe a alma, a violentar as margens do que já tinha sido o sangue prisioneiro. É um menino musical, um grafonolinho. Fala, fala e fala. Como as crianças que têm medo no escuro e precisam de ouvir nem que seja a sua própria voz. Ela está permanentemente no escuro. Ele é um homem  que tem uma certa dificuldade em ouvir mais de dez por cento do que lhe dizem. Mesmo quando, ou sobretudo quando está a olhar nos olhos de quem fala.  De repente diz qualquer coisa, uma frase, uma palavra, e é a síntese perfeita. O acorde perfeito, já agora. De modo que, veja-se, aconteceu esta coisa um tanto apocalíptica: descobriram que se entendiam segundo as leis de uma energia desregulada - e imagina-se isto aplicado a dois corpos em movimento. Há quem lhe chame paixão, há quem diga que é onde um homem pode começar a morrer. Porque, também já se sabe, agora o combate é de vida ou de morte. O verdadeiro lado donde o crime será fatal. 


José Amaro Dionísio, O Nome do Mundo
Lisboa: Relógio D'Água, 1996

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