UM AMOR ÍMPAR
Como eu gostei de ti, claro
gostaram de ti outros. E outros tantos
no futuro gostarão de ti assim.
Como não amar com idêntico rancor
a tua voz desfeita, avançada a noite,
a tua furiosa adição à tristeza,
o teu velho amor aos velhos chapéus?
Seria insensato não te amar,
e a nossa insensatez, que é bem famosa,
nada tem a ver com este assunto.
O que me tira o sono nesta altura
- especialmente quando penso
que serias incapaz de algo tão nobre -
é que o amor se esqueça de me matar,
pois se reparo que não serei eterno,
nada mais elegante me ocorre,
nenhum veneno tão afortunado,
para dar um final a esta comédia.
Do mesmo modo queria que o amor
- e não digo o meu amor, pois é sabido
que já não é o que era noutros tempos -
ulcerasse a tua alma até a arruinar toda.
De certeza que te agradaria
exibir este final, que agora te ofereço,
como mais um dos teus velhos chapéus.
Desconfia deste galardão:
estamos concebidos teimosamente,
és invulnerável a algo tão puro.
Quando muito retomarás o teu voo
até ao selvagem rebordo de um copo
e eu não alcanço sempre essas alturas.
O amor é ímpar, e tu e eu exactos.
Como eu gostei de ti, estás a ver,
gostaram de ti outros. Mas duvido
que alguém fosse tão parecido contigo:
inconstante e falaz, e desejoso
de ser ímpar. Talvez como o amor.
Carlos Marzal, El Corazón Perplejo,
Barcelona: Tusquets, 2005
[Trad. ID]
Sem comentários:
Enviar um comentário