à saída do turno, na mudança de turno
de novo a névoa pelos ossos
a alma trata de si e por favor não me fales da noite
o tempo perdido pelo caminho
com essa coisa comerciante
mãos nos bolsos
subindo a estrada, entre as canas da índia
dentro das ruas como nos desenhos
até chegar a estas palavras
ardeu tudo há muito tempo
andamos com restos no bolso, um minuto por vigiar
como almas penadas, aquelas que erram
sem poderem regressar
nunca
ou não era bem assim
João Almeida, A Formiga Argentina,
Lisboa: Averno, 2005
[ID, 'Aqui a tua casa: esta névoa', São Miguel 015]
*
PARTE POÉTICA
Não é fácil ser poeta a tempo inteiro.
Eu, por exemplo, nem cinco minutos
por dia, pois levanto-me tarde e primeiro
há que lavar os dentes, suportar os incisivos
à face do espelho, pentear a cabeça e depois,
a poeira que caminha, o massacre dos culpados,
assistir de olhos frios à refrega dos centauros.
E chegar à noite a casa para a prosa do jantar,
o estrondo das notícias, a louça por lavar.
Concluindo, só pelas duas da manhã
começo a despir o fato de macaco, a deixar
as imagens correr, simulacro do desastre.
Mas entretanto já é hora de dormir.
Mais um dia de estrume para roseira nenhuma.
José Miguel Silva, Últimos Poemas,
Lisboa, Averno, 2017
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