sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

L de (A) Luz da Sombra (XLII)


III


Isto ocorre-me a partir desta observação: nós ainda pintamos os homens sobre fundo dourado, como os primitivos. Detêm-se frente ao indeterminado. Por vezes dourado, por vezes cinza. Às vezes dentro da luz e, muitas vezes, por trás deles, com uma insondável escuridão. 


Rainer Maria Rilke, Notas sobre a melodia das coisas,
trad. Sandra Filipe, Lisboa: Averno, 2011






AMOR


O rapaz na extremidade da carruagem
não parava de olhar para trás
como se estivesse com medo ou à espera de alguém

e, em seguida, ela apareceu na porta de vidro
da carruagem seguinte e ele levantou-se,
abriu a porta e deixou-a entrar

e ela entrou na carruagem levando consigo
uma grande caixa preta
na forma inconfundível de um violoncelo.

Ela parecia um anjo com uma testa alta
e olhos sombrios e os cabelos
estavam presos atrás do pescoço com um laço preto.

E por causa de tudo isso,
ele parecia um pouco estranho
na sua felicidade em vê-la,

enquanto ela estava simplesmente ali,
perfeitamente viva como uma criatura
com um rosto suave que tocava violoncelo.

E a razão pela qual estou a escrever isto
na parte de trás de um envelope
agora que eles deixaram o comboio juntos

é dizer-vos que, quando ela se virou
para colocar o grande e delicado violoncelo
na bagageira superior,

vi-o a olhar para ela
e para o que ela estava a fazer
da mesma forma que os olhos dos santos são pintados

quando estão a olhar para Deus
quando ele está a fazer algo de extraordinário,
algo que o identifica como Deus.


Billy Collins, Amor Universal,
trad. Ricardo Marques, Lisboa: Averno, 2014

[Imagem: Giotto]

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