NUUR
para Patrícia Joana
A pouca luz que tenho no rosto, provém do facto de ler, todas as madrugadas, um fragmento do Alcorão.
Muito pouca luz, mas redonda.
O meu corpo é anguloso, ossudo e imerso em trevas. Só quando caminho se acendem luzes, como o plâncton, à noite, nas margens do mar da Índia. Então, entre os meus passos, perpassam estrêlas.
Se estou imóvel, porém, só o meu rosto se distingue. Nem eu próprio me vejo todo por fora, nem mesmo diante dum espelho, tal a profundidade dêste mergulho interior.
Aqui respira-se melhor.
Pode dizer-se o que se quiser.
O rigor da poesia é ganhar esta Grande-Guerra-Santa com a nossa própria alma.
Cada vez mais se me antolha evidente ser a vida uma preparação para a morte: lugar comum, onde todos nos sentamos.
Há quem fique de pé, mas por pouco tempo.
A pouca luz que tenho no rosto, provém igualmente de um beijo teu.
Um beijo muito núbil, cheio de castidade e desejo, num perfeito equilíbrio de suavidade religiosa.
Um beijo inspirado por Deus.
Agora, quando leio o Alcorão, de madrugada, a pequenina luz circular do meu rosto aumenta de diâmetro e ilumina o som do texto.
Já não preciso do candeeiro aceso.
António Barahona, Raspar o fundo da gaveta e enfunar uma gávea,
Lisboa, Averno, 2011
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