SE EU FOSSE...
Se eu guardasse patos.
Mas não figura romântica, dama, estilizada.
Não como a que se debruça risonha, regaçada,
para o lago pequeno do Jardim da Estrela.
Se eu guardasse patos, de pé descalço ou de
tamancos...
De cana na mão, malhado do sol, esgrouviada,
sem graça nem disfarces!
Levaria o meu rebanho à minha frente, direitinho
à pancada.
Vá tu, mole. Vá tu, mal mandado. Vá, vá!
Real guardadora de patos da borda-de-água...
Se eu fosse!
Patos, meus cuidados, batidos e dóceis correríeis
como gamos.
Ou se eu fosse uma mulher de canastra.
Das que atravessam a correr as pranchas, carregadas e airosas.
Tantos passos para lá, tantos outros para cá...
Entre o barco e o cais o espaço é curto e debaixo há água.
E a prancha ginga.
Mas elas correm pesadas, seguras e rítmicas.
Ser uma mulher de canastra...
Se eu fosse!
João Falco (Irene Lisboa), Outono havias de vir,
Lisboa: Seara Nova, 1937
"Filha de rei guardando patos", Jardim da Estrela, 1917
*
FILHA DE REI GUARDANDO PATOS
[Jardim da Estrela, 1917]
Já não nos podem tirar nada:
o castelo estava em ruínas
quando o conquistámos
e da revolução sobrara apenas
a memória doméstica da água cortada,
toda aquela roupa por lavar.
Mas as estações deixavam-se guardar
nos herbários e o futuro rasgava-se
ainda nesse gesto largo, sem muros,
longe do exercício incerto de descer
a calçada mais íngreme.
Estas eram as nossas estrelas -
açaimadas, coxas, vadias.
E não desistimos de as trazer para casa.
Inês Dias,
in Deitar a Língua de Fora, com ilustrações de Luís Henriques
Lisboa: Língua Morta, 2012
2 comentários:
«[S]he loved beauty that looked kind of destroyed.» - like this wonderful poem.
Kssss
MF
Gosto tanto.
Beijo
m
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