sexta-feira, 14 de setembro de 2012

F de Fazer Fotografia - XIII f


PORQUE NÃO POSSUÍMOS
(O olhar)


 I


Porque não possuímos,
vemos. A combustão do olho a esta
hora do dia quando a luz, cruel
de tão verdadeira, corrompe
o olhar já não me traz aquela
simplicidade. Já não sei o que é que morre,
o que ressuscita. Mas observo,
recupero o fervor, e o olhar faz-se
beijo, já não sei se de amor ou traição.
Quer cunhar as coisas,
deter a sua indefinida pressa
de adeus, vestir, cobrir
a sua feroz nudez de despedida
com seja o que for: com essa membrana
delicada do ar,
ainda que fosse apenas
com a subtil ternura
do véu que separa os bagos
da romã. Quer espalhar o seu óleo
denso de juventude e de cansaço,
em tantas dobradiças luminosas que abre
a realidade, entrar
deixando aí, em alcovas tão fecundas,
o seu pouso e o seu despojo,
o seu ninho e a sua tormenta,
sem poder habitá-las. Que olhar
escuro vendo coisas tão claras. Observa, observa:
ali sobe fumo, começam
a sair dessa fábrica os homens,
de olhos baixos, de cabeça baixa.
Ali está o Tormes com o seu céu alto,
crianças nas margens entre escombros
onde esgaravatam galinhas. Observa, observa:
vê como já,  mesmo com encaixes e cavilhas,
com rugas e asperezas,
vão fluindo as coisas. Brota, fonte
de rico veio, meu olhar, minha única
salvação, sela, grava,
como numa árvore os apaixonados,
a loucura harmoniosa da vida
nas tuas velozes águas passageiras.


Cláudio Rodríguez
[Trad. ID]

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