domingo, 3 de maio de 2020

ALEGRIA MORTÍFERA


Ó morte, vem a meus braços,
já que não posso morrer!

AFONSO DUARTE


     A morte rondava, rotatita, ritual e ríspida:
     comia os adjectivos todos, não perdoava a eternidade dos momentos, levara a mãe e alguns dos seus melhores amigos.
     A morte respirava perto, descalça, a dansar sobre cacos de vidros.

§

     A morte punha a nu a sua castidade toda.

§

     Dormiam como dois irmãos, unidos pelo mesmo sangue, que circulava através da ternura.

§

     Esperavam um pelo outro, enquanto dormiam.

§

     Amava sem medida, sem deixar de ser perverso: andava pelo verso a verificar o som do vinho a cair no copo,
     a vibração do eco colorido e do sabor,
     cansado do cansaço, o coração cheio de musgo,
     emparedado entre a paixão e o remorso.


24.II.96


António Barahona, Maçãs de Espelho,
Lisboa: Língua Morta, 2012

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