sexta-feira, 8 de maio de 2020

Q de Quarentena (VIII)


De quando em quando, alguém escreve diante de uma janela que dá para outra janela. Vive depois da deflagração e da rasura, e às vezes, ao tocar no rosto, percebe que as cinzas e o vento o escavaram até o deixarem desabitado. Escreve como quem apanha as palavras do chão e lhes tira o pó e o cotão, ao erguê-las na sua palma. Endireita-lhes os cantos dobrados e, ao observá-las com atenção, receia que já não lhe sirvam para nada. Mas não tem outras, porque vive num quarto de hotel arrasado e silencioso, e neste livro começou a caminhar no sentido contrário ao horizonte; a contar a vida de novo, embora desta vez não haja ninguém em frente para anuir com exclamações moídas. Contar a vida de um modo vacilante, precário, coxo e repondo as palavras espalhadas pelos escombros sem luz nem certezas. É nisto que consiste escrever: é esse café que vamos tomar depois de estarmos sem falar e que alguém propõe com pouca convicção, “fala-me de ti, conta-me a tua vida” e o outro, ao começar, só encontra um olhar no espelho que está atrás do balcão.


José Ángel Cilleruelo
in Cão Celeste n.º3, 
trad. Inês Dias, Lisboa, Maio de 2013

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