A DOIS PASSOS
Quando penso em ti, essoutra que eu nunca mais
soube ao certo quem era, ou quem eras, em ti
e em tudo aquilo que me deste, tanto que eu
nunca soube onde colocar e logo vinha o vento
e levava, quando penso em ti e mais em tudo
o que deixaste avariado na minha vida e eram
todos os pobres artefactos dela, da minha vida
quando penso em ti, isto é, quando penso em
nós, nessa coisa insólita e paupérrima que nós
éramos, ou que nós fomos um dia, é no inferno
é ainda e só e mais uma vez no inferno que eu
penso - esse tempo esse calor esse frio essa espera
insuportável. É no inferno que penso, mas devo
reconhecer, em abono da verdade, que não era
no inferno que nós estávamos, era a dois passos
dele e se queres mesmo saber era agradável
pela boa e simples razão de que não havia mais
nada, era intensa e insuportavelmente agradável
Faltava um pouco o ar, é certo, mas quem é que
se ia importar com uma coisa dessas, havia um calor
que nos enregelava os ossos, havia um frio que nos
aquecia. Era a dois passos do inferno - estava-se bem.
Rui Caeiro, "Do inferno - cinco aproximações"
in Telhados de Vidro n.12,
Lisboa: Averno, Maio 2009
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