sábado, 15 de março de 2025

P de PELOS CAMINHOS DA MANHÃ




para a Inês

Os do teu tempo, coitados,
não vão achar bem o título.
Pudessem ao menos perceber
que não existe tempo
ou que "real" (por exemplo)
é a navalha firme
que se fechará em breve,
anulando os gestos todos.

Quero, na verdade, que se
lixem. Acordei com esse verso,
abri a porta ao nevoeiro (é uma
observação meteorológica)
e seguimos, em silêncio,
até ao extremo da lezíria.

Pássaros que nunca vira
insistiram em acompanhar-nos,
pela estrada de areia breve
onde tantas vezes caí de bicicleta.
Quase gostei de estar vivo -
vivo, ao teu lado, naquela manhã de Março.

Pássaros, uma papoila isolada,
a sombra do mais castanho dos cavalos
diziam-me que a morte
se calava só para que te pudesse ver.
Enquanto as nuvens, já sem cor, passavam.


Manuel de Freitas, Terra Sem Coroa (Teatro de Vila Real, 2007)

E de "É assim que se faz a História. Sem palavras a mais." (XXXV)

AS PAREDES DO SENTIDO TÊM DE FACTO BOLOR



Está tudo bem. O céu do Ocidente
decai, os índices da Bolsa mantêm-se
estáveis, catastroficamente presentes
na vida de cada um de nós
- aqueles que adiam o amor e
que sempre gostaram tanto 
de mentiras certas e portáteis.

O céu do Ocidente, em Lisboa, é
um fundo negro de asfixia e paixão
onde apenas estrelas moribundas 
nos lembram que existe um olhar míope
- enquanto o milénio finda
com as suas máquinas de triturar canções,
os tão pequenos ardis que promovem
a derrota. O sangue parado, no chão.

E os índices da Bolsa como raparigas 
novas nos infatigáveis jornais
por ler, ao lado dos cigarros, ajudam-nos
a esquecer os cancros que uma moral suspeita
soletra. Será isto a vida? Também.
O telemóvel de Prometeu dá-nos
indicações precisas sobre a ignorância,
observa o fuso horário do desespero.

Modos de pavor, em suma,
que em qualquer tempo seriam
esta mão ocidental e fria
que escreve para ninguém ouvir
o nada que tem (terá?)
para dizer na noite corrompida.
As coisas são assim, paciência, 
e aglutinam-se, em dígitos complicados,
o novo Peugeot pensante,
terapias por cumprir de Burton:

a melancolia nos ossos, as fezes da amada
sob a cabeça amante,
enquanto um airbag trocista
nos obriga a uma vida 
que se gastou tão gasta
e que rescende nula
nos mais variados aspectos.

Pois é.


Manuel de Freitas
in A Última Porta, selecção e posfácio de José Miguel Silva,
Lisboa:  Assírio & Alvim,  2010

N de "Na casa de Julho e Agosto" (IV)


NESTE SILÊNCIO

         
Neste silêncio oculto onde as tuas mãos se deslumbram a cada movimento, subsistimos com o peso do crepúsculo e a miséria da guerra.

Inútil a nossa vida, inútil a vida dos outros, quando o amor é um pássaro dentro duma gaiola no deserto. Inútil toda a simbologia funcional das imagens, porque ao homem é dado o sonho com o sentido das coisas.

De bruços sobre a areia, descanso as pálpebras no mar. A minha ociosidade é um peixe de prata adormecido nas ondas, um barco sem dono ancorado na doca. E hei-de morrer assim contigo, companheira ou ilusão do meu cansaço, porque a verdade que trouxemos é um trapézio vasio num circo em ruínas, uma flor no trapézio e muitos gatos a assistir até ao dia nunca mais do horizonte livre.
 
       
António Barahona da Fonseca, Poemas e Pedras,
Lisboa: edição do autor, 1962






[ID, Nazaré / Agosto 013]