domingo, 2 de novembro de 2025

L de Lost in translation


A MORTE E A DONZELA



AMY LOWELL (E.U.A., 1874-1925)


GROTESCO


Porque é que os lírios me deitam a língua de fora
Quando os corto;
E se torcem e contorcem
E se estrangulam entre os meus dedos, 
Ao ponto de mal conseguir tecer esta grinalda 
Para o teu cabelo? 
Porque é que gritam o teu nome 
E me cospem 
Quando os tento juntar?
Terei de os matar 
Para que fiquem quietos, 
E enviar-te uma coroa de cadáveres suspensos 
Que murchem e apodreçam 
Na tua testa  
Enquanto dansas?


*


ANTONIA POZZI (Itália, 1912-1938)


NOVEMBRO


E depois – quando eu partir
restará alguma coisa
de mim
no meu mundo –
restará um fino rasto de silêncio
no meio das vozes –
um ténue sopro de branco
no coração do azul –

E numa noite de Novembro
uma menina frágil
à esquina de uma rua
venderá braçadas de crisântemos
e lá estarão as estrelas
gélidas verdes distantes –
Alguém chorará
em algum lugar – em algum lugar –
Alguém irá procurar crisântemos
para mim
no mundo
quando sem regresso
eu tiver de partir.


*


ALEJANDRA PIZARNIK (Argentina, 1936-1972)


CAPÍTULOS PRINCIPAIS


Chega a morte com o seu rebanho de ossos
sorrio submissa a uma menina idiota
que implora em meu nome
juntas (a morte, a menina e eu)
não encontramos outro trabalho senão odiar
No final todos se casam:
o mar e as ondas,
a noite e o escuro,
o copo e o vinho,
o anel e o dedo,
a morte e o cadáver.



Poemas escolhidos/traduzidos por Inês Dias,
 aqui compostos/impressos por Luís Henriques e Manuel Diogo 
para A Faca Romba, Lisboa: Oficina do Cego, 2012




quarta-feira, 15 de outubro de 2025

C de "Canção diante de uma porta fechada"


O título é de Agustina Bessa Luís; a fotografia de uma capela entrevista em Cascais;
a vontade de (re)ler The Time of the Angels, de Iris Murdoch, e todos os livros de Ana Teresa Pereira.

sábado, 4 de outubro de 2025

P de (Dois Anos de) Pássaros





"On the set of the film The Mirror, Andrey Tarkovsky included himself in one scene, lying in a hospital bed and holding a tiny bird on his right hand. And this is what happened to him at the end of his life: in his sick-room in Paris, the room where he died, a little bird would fly every morning through the open window and come to light on him."


- in Instant Light - Tarkovsky Polaroids,
Londres, Thames & Hudson, 2009

S.T.T.L.





[...]
Já referi que São Francisco se recusava a deixar de ver as árvores por causa do bosque; mais ainda, também se recusava a deixar de ver os homens por causa da multidão. Aquilo que distingue este democrata genuíno de um mero demagogo é o facto de nunca ter enganado os outros nem se ter deixado enganar pela ilusão da sugestão de massas; por muito que gostasse de monstros, nunca viu diante de si um animal com muitas cabeças: apenas via a imagem de Deus, multiplicada, mas nunca monótona. Para ele, um homem era sempre um homem e, se não desaparecia no deserto, também não desaparecia no meio de uma densa multidão. [...]

G. K. Chesterton, São Francisco de Assis,
Lisboa: Alêtheia Editores, 2013

terça-feira, 30 de setembro de 2025

D de Do outro lado do espelho



Deborah Levy, Direito de Propriedade
trad. de Inês Dias,
Lisboa: Relógio D'Água, 2021

quarta-feira, 24 de setembro de 2025

T de "The days grow short" (XI)


6.


Mas possa eu, Senhor, não perder nunca
os olhos com que ao frio me enamoro
das folhas que se movem casuais
ao vento outonal das alamedas.


in Telhados de Vidro n.º 3, Lisboa: Averno, Novembro de 2004




[Coimbra, Janeiro 014]

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

P de "Photographing Fairies" (II)

 


[ID, Caneiras, 17/08/013]



[ID, Raposa, 23/08/025]

sábado, 16 de agosto de 2025

P de Poética (LXIII)

 

And if you missed a day, there was always the next

- LOUISE GLÜCK -


*


Tous les matins du monde sont sans retour.

- PASCAL QUIGNARD


4



Quando conheci a Morte
o verão era um tigre
a respirar junto do meu pescoço.
E a Morte estava embriagada de abelhas;
a Morte era metálica.


À espera entre folhas verdes
a Morte usava o vermelho da raposa;
as abelhas como pepitas de ouro
fervilhavam no coração da Morte.
O sangue da Morte era negro.


Sobressaltada, regressei
a um súbito isolamento.
Agora já sei a cor da estação da Morte:
ouro, vermelho e verde.
A língua da Morte é negra.


- Rikki Ducornet
[Trad. ID]

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

P de "Primavera, Verão, Outono, Inverno e... Primavera" (V)


24.

e se o demónio voltar - enquanto persegues a aranha pelas paredes da noite e do dia - e disser que a possibilidade de regresso não é uma teoria física nem moral apenas estética? enfrentarás com a mesma impaciência os meses que se erguem com espuma, se suspendem e aceleram em ondas pesadas e regulares como a respiração de um gigante? escrevo esta carta no início do verão, uma mão litoral no cabelo enquanto hesito. o automóvel está estacionado à porta de casa, o resto a caminho do sul. no final hão-de restar apenas as estrias de sal sobre o dorso, a interpretação desses mapas.


Tiago Araújo, Livre Arbítrio,
Lisboa, Averno, 2009




[ID | Santarém, 04/2013]

quarta-feira, 6 de agosto de 2025

L de (A) Luz da Sombra (L)

 

"Quando o médico lhe tirou as ligaduras e a levou ao jardim, a menina que já não era cega viu 'a árvore que tem luzes'. Foi essa árvore que procurei entre os pomares de pessegueiros do Verão, nos bosques do Outono e ao longo de todo o Inverno e toda a Primavera, durante anos. Até que um dia estava a passear ao lado do rio Tinker, não pensando em coisa nenhuma, e vi a árvore que tem luzes. Vi o cedro das traseiras, em que as rolas-carpideiras se empoleiravam durante a noite, tenso e transfigurado, cada uma das suas células zumbindo com ardor. [...] Não era tanto ver, mas ser vista pela primeira vez, deixada sem fôlego por um olhar poderoso. A torrente de fogo esmoreceu, mas continuo a usar a sua energia. Aos poucos, as luzes apagaram-se no cedro, as cores morreram, as células extinguiram-se e desapareceram. Eu continuava a ressoar. Fui um sino toda a minha vida, mas nunca o soube até esse momento em que me vi erguida e tocada." 

- Annie Dillard, Peregrinação em Tinker Creek, trad. Inês Dias
(Antígona, 2025)





[ID | 'Pelos caminhos da manhã', 025]


terça-feira, 5 de agosto de 2025

A de Anomalia Poética (VIII)

 




[ID, Santarém-Lisboa, 2014-2021]

C de Começar o dia com um livro novo (XIV)

O MUNDO NÃO PODE DORMIR
 
 
 
      Há hoje no mundo pouca gente que durma; as noites são mais longas, mais longos os dias.
     Em todos países, por essa Europa fora, em todas as cidades, em cada rua, cada casa, cada aposento, tornou-se mais curta e febril a tranquila respiração do sono; a época é de fogo, e como se fôra uma única noite de verão, pesada e abafadiça, cai sobre as nossas noites e perturba-nos os sentidos. Quantos, aqui e algures, habituados a deslizar entre o princípio da noite até de manhã na barca negra do sono - enfeitada com as rútilas e flutuantes bandeiras dos sonhos - ouvem agora à noite o tique-taque dos relógios, e vagueiam pelo tremendo caminho que vai desde o cair da sombra até ao aparecimento da luz, e sentem lá dentro o verme dos cuidados a roê-los sem cessar, a roê-los sem descanso, até que o coração adoece e fica em ferida. Toda a humanidade tem agora febre de dia e de noite; esse terrível, pavoroso estar desperto transparece nos sentidos sobreexcitados de milhões de criaturas: o destino penetra, invisível, através de milhares de portas e janelas e expulsa o sono; de cada leito afugenta o esquecimento. Há pouco quem durma no mundo; são mais longas as noites, mais longos os dias. Ninguém pode estar sozinho consigo e o seu destino; cada um de nós espreita para a distância. [...]
 
 
Stefan Zweig, O Mundo não pode dormir e outros contos escolhidos,
Porto: Livraria Civilização, 1940

sexta-feira, 25 de julho de 2025

sexta-feira, 4 de julho de 2025

S de S.T.T.L.

li algures que o gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, que não, que ao menos não me encontrasse a paixão e eu me perdesse nela
a paixão grega


- Herberto Helder
in A faca não corta o fogo (Assírio & Alvim)

sábado, 28 de junho de 2025

C de Começar o dia com um livro novo (LVI)


SOL MAIOR


Mataram, deitaram abaixo o meu mestre de poesia. Era um telhado com muitos gatos que apareciam e desapareciam através de buracos.

Eu via-os, da varanda em frente, e aprendia a esvair a tristeza nos movimentos elegantes.


- JOÃO PAULO ESTEVES DA SILVA
(Manuel de Freitas / João-Paulo Esteves da Silva, Prelúdios
Lisboa, Alambique, 2020)




[ID, 'Confinamento', 03/020]

segunda-feira, 23 de junho de 2025

S de São João


FOGUEIRAS DE SÃO JOÃO


Labaredas na noite do meu nome
sinto arderem à margem
de um mar escuro -
e ao longo dos portos acenderem-se piras
de coisas velhas,
de algas e barcos
naufragados.

E em mim nada que possa
ser queimado,
mas cada hora da minha vida
ainda - com o seu peso indestrutível
presente -
no coração extinto da noite
me segue.


Antonia Pozzi, Morte de uma Estação, 2.ª ed., 
com sel. e trad. de Inês Dias, prefácio de José Carlos Soares e desenhos de Débora Figueiredo,
Lisboa, Averno, 2019




[ID, Porto | 018]

sábado, 21 de junho de 2025

I de Infância (V)

 

"[...]
Olhamos para o mundo uma vez, na infância.
O resto é memória."


Louise Glück, Meadowlands
trad. de Inês Dias [Relógio D'Água, 2022]




I de Infância (IV)

 

"[...]
Olhamos para o mundo uma vez, na infância.
O resto é memória."

Louise Glück, Meadowlands,
trad. de Inês Dias [Relógio D'Água, 2022]





[ID, 30/06/022]

terça-feira, 10 de junho de 2025

H de História de amor - b





Estudos camonianos
por João César Monteiro.

domingo, 4 de maio de 2025

P de Poética (LII)


EU TINHA GRANDES NAUS


Os amantes esquecem. A primavera volta.
A terra treme. E passam as aves em bandos
vindas de Heligoland por detrás da serra.
O teu olhar poisava em mim: estava certo
que fosse dessa maneira. Agora esqueceste
- também está certo, a gente crê-o como tal. 
Porque passar, voltar, tremer, poisar, 
esquecer o que foi agudo e fundo
são coisas, digo bem, de todos os dias.

Os poetas lamentam-se de mais.
Gastam-se por vezes num choro muito fino,
quase impraticável. Querem ser ouvidos,
e vá de escreverem tal e tal desgraça.
Mas estão desempregados? morreu-lhes a mãe?
a chuva entra pelas solas com buracos?
Ou vão mover o mundo, as azenhas do mundo?

Se o teu olhar já não poisa em mim,
paciência, não morrerei por isso.
Iuri Gagárine lá foi pelo céu acima.
Aliás a vida tem recursos admiráveis.
"Há um futuro à espera", porque não também
uma outra mulher que no futuro me espera?
Os amantes esquecem: é que alguma coisa
os leva (recônditamente) a esquecer.
A primavera volta, as aves passam em bandos;
e a mesma terra, quando treme, treme
cheia de naturalidade. Tudo isto
fará a delícia e o horror dos nossos filhos.

Os poetas, que se lamentam de mais,
acenam com as suas dores particulares
a quem passa, que passa por outras razões.
Querem dedos suaves na testa, um calor
de lábios nas pálpebras molhadas.
São poetas, isto é, seres em aflição.
Campainhas tocando ao mais pequeno vento.
Querem ser ouvidos, consolados, tapados do frio.
Temem o desprezo, a desolação ambiente,
os cães que ladram muito alto muitas vezes.

Mas o Maio volta. É bom saber
que num dia qualquer de um destes anos
vamos todos rir e dar as mãos,
troçar do domador se ainda houver.
Os amantes amam: são coisas
da primavera.
Os poetas consertam-se: são coisas
da sua mecânica misteriosa.

Portanto não morri. Eu tinha grandes naus
aparelhadas na ribeira do coração.
Portanto não morri. Caíram árvores,
camponeses gritavam enquanto a chuva
mordia raivosamente as coisas do mundo.
"Paciência", dizia eu, "não morrerei por isso".
E esperava o sândalo e a canela.


Fernando Assis Pacheco, Cuidar dos Vivos,
Coimbra, Cancioneiro Vértice, 1963

quinta-feira, 1 de maio de 2025

P de Poética (LI)


"O poema é solitário. É solitário e vai a caminho."

Paul Celan



[Moinho Grande, Agosto 013]

S de Sete rosas mais tarde



Quem arranca de noite o coração do peito deseja a rosa.
Pertencem-lhe a sua folha e o seu espinho.
A esse põe ela a luz no prato,
com o seu sopro enche-lhe os copos,
só para ele sussurram as sombras do amor.

Quem arranca de noite o coração do peito e o arremessa ao alto:
não falha o alvo,
apedreja a pedra,
a esse bate-lhe o sangue fora do relógio,
o tempo faz-lhe soar na mão a sua hora:
pode brincar com bolas mais bonitas
e falar de ti e de mim.
Paul Celan

sábado, 19 de abril de 2025

P de Páscoa Feliz (II)


"Ajoelhada no relvado húmido e perfumado do parque da aldeia, Clara Morrow escondeu cuidadosamente o ovo de Páscoa e pensou em ressuscitar os mortos, o que tencionava fazer logo após o jantar. [...]"


Louise Penny, O mais cruel dos meses,
trad. Inês Dias, Lisboa: Relógio D'Água, 2016






"Várias colunas dóricas, entrelaçadas por uma trepadeira de madressilva, davam um aspecto de velha mansão sulista à fachada da casa de Fondero. A impressão era dissipada pelo enorme carro funerário preto estacionado ao lado. Atrás do carro funerário, havia um pequeno carro desportivo vermelho. A incongruência entre os dois veículos divertiu Pinata. A morte e a ressurreição, pensou ele. Se calhar é assim que os americanos de hoje imaginam a ressurreição, como um carro desportivo vermelho, levando-os por uma estrada de espuma sintética em direcção a um nirvana de nylon."


Margaret Millar, Um estranho no meu túmulo,
trad. Inês Dias, Lisboa: Averno, 2011

sexta-feira, 18 de abril de 2025

C de "(O) começo de um livro..." - ou de uma editora (III)


Regressar a casa sozinho e noite dentro
quando o silêncio das árvores da rua se acentua
e os poemas que nunca hás-de fazer te atingem
com o fragor de telhas caídas de um telhado
mesmo em cima da tua cabeça - tanta fragilidade
E por fim entrar em casa, ordeiramente
A essa hora todo e qualquer remorso
é coisa de somenos, importante sim
para dormir, para brincar, só a morte
Ursinho de peluche no travesseiro
da cama - a tua morte


Rui Caeiro, Sobre a nossa morte bem muito obrigado,
com capa de Luís Henriques e arranjo gráfico de Inês Mateus
Lisboa: Alambique, 18 de Abril de 2014
[1.ª ed.: &etc, 1989]



sábado, 15 de março de 2025

P de PELOS CAMINHOS DA MANHÃ




para a Inês

Os do teu tempo, coitados,
não vão achar bem o título.
Pudessem ao menos perceber
que não existe tempo
ou que "real" (por exemplo)
é a navalha firme
que se fechará em breve,
anulando os gestos todos.

Quero, na verdade, que se
lixem. Acordei com esse verso,
abri a porta ao nevoeiro (é uma
observação meteorológica)
e seguimos, em silêncio,
até ao extremo da lezíria.

Pássaros que nunca vira
insistiram em acompanhar-nos,
pela estrada de areia breve
onde tantas vezes caí de bicicleta.
Quase gostei de estar vivo -
vivo, ao teu lado, naquela manhã de Março.

Pássaros, uma papoila isolada,
a sombra do mais castanho dos cavalos
diziam-me que a morte
se calava só para que te pudesse ver.
Enquanto as nuvens, já sem cor, passavam.


Manuel de Freitas, Terra Sem Coroa (Teatro de Vila Real, 2007)

E de "É assim que se faz a História. Sem palavras a mais." (XXXV)

AS PAREDES DO SENTIDO TÊM DE FACTO BOLOR



Está tudo bem. O céu do Ocidente
decai, os índices da Bolsa mantêm-se
estáveis, catastroficamente presentes
na vida de cada um de nós
- aqueles que adiam o amor e
que sempre gostaram tanto 
de mentiras certas e portáteis.

O céu do Ocidente, em Lisboa, é
um fundo negro de asfixia e paixão
onde apenas estrelas moribundas 
nos lembram que existe um olhar míope
- enquanto o milénio finda
com as suas máquinas de triturar canções,
os tão pequenos ardis que promovem
a derrota. O sangue parado, no chão.

E os índices da Bolsa como raparigas 
novas nos infatigáveis jornais
por ler, ao lado dos cigarros, ajudam-nos
a esquecer os cancros que uma moral suspeita
soletra. Será isto a vida? Também.
O telemóvel de Prometeu dá-nos
indicações precisas sobre a ignorância,
observa o fuso horário do desespero.

Modos de pavor, em suma,
que em qualquer tempo seriam
esta mão ocidental e fria
que escreve para ninguém ouvir
o nada que tem (terá?)
para dizer na noite corrompida.
As coisas são assim, paciência, 
e aglutinam-se, em dígitos complicados,
o novo Peugeot pensante,
terapias por cumprir de Burton:

a melancolia nos ossos, as fezes da amada
sob a cabeça amante,
enquanto um airbag trocista
nos obriga a uma vida 
que se gastou tão gasta
e que rescende nula
nos mais variados aspectos.

Pois é.


Manuel de Freitas
in A Última Porta, selecção e posfácio de José Miguel Silva,
Lisboa:  Assírio & Alvim,  2010

N de "Na casa de Julho e Agosto" (IV)


NESTE SILÊNCIO

         
Neste silêncio oculto onde as tuas mãos se deslumbram a cada movimento, subsistimos com o peso do crepúsculo e a miséria da guerra.

Inútil a nossa vida, inútil a vida dos outros, quando o amor é um pássaro dentro duma gaiola no deserto. Inútil toda a simbologia funcional das imagens, porque ao homem é dado o sonho com o sentido das coisas.

De bruços sobre a areia, descanso as pálpebras no mar. A minha ociosidade é um peixe de prata adormecido nas ondas, um barco sem dono ancorado na doca. E hei-de morrer assim contigo, companheira ou ilusão do meu cansaço, porque a verdade que trouxemos é um trapézio vasio num circo em ruínas, uma flor no trapézio e muitos gatos a assistir até ao dia nunca mais do horizonte livre.
 
       
António Barahona da Fonseca, Poemas e Pedras,
Lisboa: edição do autor, 1962






[ID, Nazaré / Agosto 013]