terça-feira, 23 de agosto de 2011

S de "Sempre disse tais coisas esperançad@ na vulcanologia" (XXIII)

CASTELO DE ALMEIDA LIMA


Do lado norte da ilha fica a minha casa. O mar
lança-se contra os vidros, vence a distância da vila, ruas e praças.
Setembro, em saudação
deposita à entrada do quarto a renda das marés.
Morreu ontem. E hoje desarmei o oratório. Os santos, as
pagelas, a humilde folha de oração
as imagens olhavam-te, gratas, de um a outro e outro Inverno
de uma vida
guardavam-te os lábios, as palavras no dia da sua festa
eram os teus hóspedes no norte desta ilha – ao longe, desde o cimo do
outeiro, a voz enleadora dos romeiros adormece a despedida e
na rua os caveleiros de São Pedro, celeste mensageiro, apagam a memória.

Do lado norte da vila, a minha casa
onde o vento demoradamente fala dos cimos do mar, guardo
as imagens, escolhidos companheiros de toda uma vida, no fundo
gavetão da cómoda. Estava vazio, à sua espera. (Vão sentir-se bem,
como se aguardassem a ressurreição dentro de um cesto entrançado.) Nas
gavetas cimeiras, toalhas de antiga sombra, lençóis, linho bordado
espera a visita do primeiro sono de nenhum recém nascido e a mortalha.
No oratório, a Cruz vai permanecer.
por detrás das portas fechadas. Ele sabe a tristeza da ilha, o nome da [vila, o
número da porta, o fumo pesado, azul ferrete da pequena cratera que [vai

da terra húmida para o azul cinza do céu. Ao longe, muito ao longe, na fronteira
nenhuma do mar
eu sou, eu sou agora a melancólica rapariga, a
trança ainda por fazer, tormento do laço tão azul, amarrotado.


João Miguel Fernandes Jorge, Castelos – I a XXXV,
Lisboa: Averno, 2004


Ponta Delgada/2011


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