REBECA
Já não vai buscar a bola,
defendê-la entre o cetim dos dentes
ou fugir como quem procura,
enquanto me obrigava
à altura baixa que deixou de ter,
na alcatifa de que foi princesa
e eu agradecido súbdito.
Já não – sempre já não –
os dias que quase vivemos,
prometidos à extinção, avessos
à rima inútil de um sorriso.
Tenho os dedos secos, sossegado
o colo onde depunha sem favor a cauda.
Yorkshire Terrier, seis anos, morta.
Nunca a incomodou que
eu cheirasse – e muito – a gato.
Seguia a bola, indiferente
ao pavor de haver mundo, corpos
inertes, cadáveres que gostaram dela.
E de quem gostou, pois um animal
não mente: existe como não sabemos,
na mais curta distância, numa rendida
proximidade que subitamente termina.
Foste poupada ao cálculo, à usura
– mas nem por isso à dor,
pequena distracção de Deus.
A bola chegou ao fim do corredor
e ninguém ma trouxe, desta vez.
Vencer essa dor é encontrar mais dor,
chamar por um nome que não existe.
A não ser que conheças Lázaro (mas
Lázaro, receio, é nome que não se dá a um cão)
e que ele tenha uma bola só para ti
e que o teu pêlo de cobre e prata
volte a ser uma certeza,
vou ter, Rebeca, muitas saudades tuas.
Manuel de Freitas, Theacher was here,
Lisboa, 2009
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