terça-feira, 8 de setembro de 2020

S de "Sempre disse tais coisas esperançad@ na vulcanologia" (XXX)


Dizem que em cavidades de alguns poços,
nas fissuras, por onde cresce o musgo,
faz seu ninho por vezes certo pássaro
e solta desde aí seu canto incerto.

Duvidas e cantas: é o teu credo.
Salvar um pouco desse instante único
que chega a ti como um deslumbramento,
como uma convulsão que desfaz
e dilui fronteiras, coutos, limites.
Porque também o tempo, quando quer
e se detém a meio de dois números,
é um peso que eleva, é como um bálsamo
que alivia a dor de viver sem rumo,
de estar perdido onde nada é nada
e tudo muda de essência e forma.

Vive e alegra-te. E morde a fruta
que é ser e respirar ainda hoje
embora ao comê-la o sabor amargue.
Entra sem medo num lugar mais fundo:
não há sendas que saiam deste bosque.

Voa a teu lado o corvo e sentes frio.
Tuas mãos tocam uma porta, um muro.
Ao longe escuta-se um rumor de água.
Cercam-te vozes, passos de outra vida.
Aqui a tua casa: esta névoa.


José Mateos, A Névoa
trad. e posfácio de Joaquim Manuel Magalhães, 
Lisboa: Averno, 2006







[ID, São Miguel / Agosto 012]

2 comentários:

Anónimo disse...

tudo lindíssimo, fotografias e poema... a 3ªfotografia é magnífica.
beijos à espera de mais coisas bonitas.
m

bea disse...

Que fotos tão simpaticamente sonhadoras para acompanhar um poema que me parece de incentivo ao caminho.