segunda-feira, 5 de agosto de 2013

P de (Po)ética - XLIX b


felicidade


Acorda com as mãos em concha
a defender a sombra onde fez casa
e permanece sentado. Os dias passam
na sua claridade e ele, imóvel,
doente de palavras, não as suporta,
não servem para nada. Imóvel,
não quer mais sentir-se ferido,
ameaçado. Dorme e acorda
nessa inactividade. Espera.
E expectante crê que um dia
a luz há-de encher o quarto.
Não se consegue levantar, não
consegue senão a consciência
desse instante vago, olhos fixos
no soalho ou rente às paredes
da casa, atento às sombras a quem, 
horror, sorri. Assim o encontram
dias mais tarde. Como se estivesse
a rezar. Ele, cuja metafísica
era saber que as palavras não são
suficientes para nos tornar mais tristes.


Carlos Bessa, Em Partes Iguais,
Lisboa: Assírio & Alvim, 2004