sexta-feira, 8 de abril de 2016

E de Espera (LVII)


Não é por acanhamento que olha para o chão,
mas pela volúpia da surpresa.

É capaz de percorrer bairros inteiros a matutar
no xadrez das calçadas.
em busca do vagaroso rei dos seus olhos.

Nos lancis vê peitos magros de braços guindados,
caudas enroscadas em flechas.
Em soleiras de portas,
canhões antiquíssimos a fumegar ainda
por entre a lã do movimento.

Fascina-a sobretudo a repentina simetria
dos pingos de chuva.

As vozes atravessam-na como bandeiras desferidas
no cimo da mais erma colina.
Toda a paisagem, fechando os olhos,
é uma investida solitária,
vociferada à constelação de nuvens que
circunspectamente
vai amparando o céu.

Ela sabe que entre a terra e o espaço
também os olhos se fecham.
O mundo é, a todas as horas, nas nações
e nos bosques, o útero de um raríssimo encontro
de bichos predadores
a que os deuses chamam embaixada.

No teu sonho, quando a tocas,
ela junta os pés,
como quem namora um precipício,
e balouça-se para trás.
Estranhamente, também tu sentes
que passaste os anos a fixar o caminho,
que só agora, na linha dos seus ombros,
surge o horizonte inapelável
da encarnação.

Que entre ti e ela é a terra e o espaço
que cruzam os olhos.


Vasco Gato, Primeiro Direito,
Lisboa: Artefacto, 2016

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