BEM FUNDO
Um prego na gengiva,
bem fundo, até onde seria
de crer que só chegasse a alma, assim
as árvores nos crescem
por dentro da memória, onde as raízes
a fazem rebentar, assim
as folhas que nos servem
por momentos de pele
se nos agitam no espírito, onde a pele
se afunda como num écran,
a pele, um jeito de árvore que tivesse
um espelho entre as raízes,
a pele que nos vendou, que nos serviu
de venda e de memória,
brancura que o lençol disputa às trevas,
irmã dessa raiz
agarrada ao écran, dessa gengiva
esquecida de já ter estado na boca
e agora apenas presa
à alma, sobre a qual
parece debruçada.
Luís Miguel Nava
in Rosa Maria Martelo, O Cinema da Poesia,
Lisboa: Documenta, 2012
[ID, 'Une Famille d'Arbres', 12/03/016]
POÉTICA
e um amor que partiu, ao amanhecer,
e nos deixou a luz feita em pedaços.
Um pai e uma mãe que se esgotam,
uma foto em Lisboa, um cão tonto,
dois ou três livros, quatro ou cinco quadros.
Todos temos uma rua escura,
uma avenida que nos reconhece,
uma árvore velha e um antigo pátio.
E a certeza de que tanto é nada,
a desgraça de ser o que perdemos,
a sorte de viver para contá-lo.
Ángel Mendoza
in Criatura n.º 6, trad. de Inês Dias,
Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Novembro de 2011
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