sexta-feira, 4 de março de 2016

P de Pele (IV)


[...] O dicionário diz que 'aguentar' é segurar uma corda que corre; resistir ao vento, como uma vela. Ela sempre usa a palavra 'aguentar'; faz parte do seu repertório de vida. Quando alguém diz que tem um problema, que não consegue fazer qualquer coisa, ela sempre fala: 'aguenta sim; a gente aguenta tudo; é só querer'. Ninguém consegue nem pode contestá-la, já que ela passou pelo que passou. Aguentar tudo, para os humanos, que não são como as velas de um barco, tem um preço. No caso dela, foram as circunstâncias que a obrigaram a aguentar. Em outros casos, diferentes de frio, fome, sede, talvez não seja necessário nem aconselhável aguentar tudo; talvez seja até preciso resistir menos, ser um pouco mais fraco, para que as consequências de segurar uma corda que corre não sejam tão drásticas. Mas não no frio. No frio, é preciso segurar a corda que corre. O frio é uma corda que corre impiedosamente e quem passa por ele deve ficar com a alma mais seca, assim como a pele que endurece e também seca no contato com ele. Depois do inverno, as temperaturas muito baixas se esquecem, e é por isso que ela não consegue entender agora como conseguiu aguentar. Mas o frio deixa suas marcas indeléveis e secretas. Alguém que passou pelo frio intenso, sem agasalhos, é diferente de alguém que nunca passou por isso. [...]


Noemi Jaffe, O que os cegos estão sonhando? - com o Diário de Lili Jaffe (1944-1945),
São Paulo, Editora 34, 2012

Sem comentários: