segunda-feira, 28 de março de 2016

I de Intimidade (III)


A propósito de intimidade, disse que há um reduto último que não se partilha. Nem com quem se ama?

Khalil Gibran dizia: "a pessoa casa-se, partilha tudo mas não partilha o prato". É a tal barreira de que falámos anteriormente. Há limites que não podem ser ultrapassados, para que as relações entre as pessoas se mantenham, mesmo as mais próximas. A distância que assegura a intimidade tem de ser incondicionalmente preservada. Nietzsche também fala disso de uma forma muito clara. Ele diz que, se vivermos em demasiada proximidade com alguém, é como estar permanentemente a tocar uma boa gravura com os nossos dedos... um dia não teremos nada mais nas mãos senão um pobre papel sujo.
Cada pessoa tem de ter o seu espaço, há sempre uma parte íntima, sua e secreta, que deve ser absolutamente protegida mesmo que partilhes a vida com alguém. Claro que deves também respeitar a parte privada da outra pessoa, não a invadindo ou devassando, mantendo uma certa distância. Quando se quebram todas as barreiras é o fim. As pessoas deviam ter isso sempre presente.


Quebrar todas as barreiras é obsceno?

Obsceno, sim. Como disse, manter as barreiras de um espaço intacto, não romper, não forçar a entrada, é de uma sabedoria imensa. Não mexer nos papéis pessoais do outro, não quere saber tudo, não exigir o significado de tudo... Nem tudo tem de ter uma resposta e nem todas as perguntas têm de ser feitas - perguntar tudo também é obsceno. Há perguntas que não se fazem mas, para o saber, é preciso ser-se muito sábio. Isto é sabedoria e, ao mesmo tempo, a maior prova de confiança. Sabedoria e confiança andam juntas, uma leva à outra.
Novalis escreveu: "Nunca nos iremos compreender totalmente - mas podemos e faremos a nós próprios muito mais do que compreender". É por isso que digo que é na partilha do impartilhável que se encontram os nossos irmãos.


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Um sentido de comunhão?

Exactamente. Esse silêncio cria uma espécie de irmãos. Dá-se o reconhecimento mútuo, onde há outras formas de comunicação que não passam pelas palavras: quando os fios estão limpos e descarnados, a corrente eléctrica pode passar.
Há uma coisa que todos sabemos e que está continuamente presente: a vida é muito curta. Conhecermos pessoas que estão no mesmo campo de inquietações que nós é um privilégio e uma forma de comunhão, como dizes. Por isso, penso sempre que a vida é demasiado curta para perdermos tempo com pessoas e coisas idiotas, arte imbecil, ideias cretinas ou questões estúpidas. Temos de ser muito selectivos, a vida é um fogo-fátuo. Muita gente não tem noção disso, perde-se em questões sem interesse nem grandeza e depois é tarde de mais... Estar vivo, partilhar a nossa vida com as pessoas que admiramos, ou até vir tomar banho ao mar, são privilégios.


Rui Chafes
in Sob a Pele... conversas com Sara Antónia Matos,
col. "Cadernos do Atelier-Museu Júlio Pomar, Lisboa, Documenta, 2016

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