terça-feira, 12 de março de 2013

L de Leituras paralelas


DIZER NÃO AOS BONS OFICIAIS COMO OFÍCIO,
à sua máscara e ao seu enjoo.
Dizer basta à sua organização, à sua ordem,
acabou-se a tanto arcanjo diplomático.
Saber que cada abraço é um selo na boca
e que os nossos silêncios são comprados com pancadinhas
nas costas e nos ombros. Não hesitar na hora
de reprimir um lampejo das nossas vaidades.
A beatice mordeu-me em jovem
e converti o amor em meu inimigo.
Prometeram-me mundos e fundos
e dormi com a ambição, essa amante com espinhos.
Depois disse até aqui, e não era tarde
porque estremeci na magia
de um fio que me prendia à origem do mundo
e até lá passava pelas coisas secretas.
Mas vieram outra vez os bons com as suas músicas,
vestiram-me de limpo, casaram-me
com a decência e o decoro
e em troca cobraram-me muito sangue.
Já basta de Verdade com os seus remendos.
Já basta de chantagem, morte à sua derrota,
que a ameaça não prolongue a minha vida.
À hora da sesta, quando tudo é sonolência
e recupera a paisagem a sua nudez antiga,
como Gregory Corso subi ao sótão
e abri a janela para atirar as coisas
mais importante por ela: a Verdade, com a sua impostura,
disse-me: “Não faças isso, senão denuncio-te;
direi que foste infiel aos teus amigos,
à tua mulher, desleal com os teus pais,
uma má pessoa”. Fora!
E logo Deus a jurar por si mesmo
através dos seus templos e dos seus corifeus
isso do livre arbítrio, que Ele não teve culpa,
que está inocente
porque na sua essência sem contradição
não é capaz de mentir, nem dividir-se
no seu todo absoluto, excepto
quando ao sétimo dia
encarregou Heine de criar as nuvens.
E depois o Amor a prometer a sua felicidade
como um bolo de cascas,
enjoativo primeiro e depois sujo.
Livre!, sim, na condição de não obter
tal liberdade de joelhos fincados.
Livre!, mas de tanta liberdade,
essa que liga Deus às contradições
dos seus operários especializados, não às do santo
ou às do missionário que estão feitas de pão,
de vinho e de reunião:
a liberdade da sabedoria como uma circunferência,
a liberdade da razão sempre a duvidar,
a da fé não submetida ao seu dogma.
Ramos sem tronco floridos,
no extremo erigida a flor
como o sangue elevado no beijo,
sem a sua raiz a rosa na liberdade azul,
os pássaros com mãos ou os homens com asas.
E o seu fulgor como de feitiçaria.
Um sonho em que gire o universo.
Eu e a minha luz em solene despedida de tudo o que me prende,
à margem da lei, do seu artifício, do seu clã;
da justiça, que nunca enforca
os bolsos cheios.
Eu voando, voando onde não
há choro, voando no esquecimento.

Mas como costuma acontecer nos sonhos felizes
acordei nesse ponto,
quebraram-me de repente o mealheiro
como o entardecer o céu puro do oeste.


Antonio Hernández, O Mundo Inteiro,
Lisboa: Língua Morta, 2012