sexta-feira, 15 de abril de 2016

S de Sexta-feira (III)


AQUI


Eu estou sempre aqui.
RUY CINATTI


Gostava da chuva mansa
dos dias do norte,
adorava a humidade sobre o rosto:
pouso no chão o telefone
sobre o tapete cinzento
e ajusto a luz nas persianas;
ria-se por nada às sextas-feiras
quando ao entardecer
enlouquece de súbito a cidade:
fecho a varanda
em pleno agosto para impedir
que se espalhe a campainha;
não perdia uma única
das manhãs de feira,
as rifas, as lojas com sardinhas:
abro um livro para fechá-lo,
não me sobressalte a meio de um verso
o som do telefone;
atava à esquerda
o cachecol sobre a gabardina
desproporcionalmente clara:
ponho um disco, embora baixo,
e olho com prazer o aparelho
mudo sobre o tapete;
gostava de passar a noite em comboios,
apanhar aviões, camionetas
para qualquer lado:
no meu caderno anoto uma data mais,
outro dia, outro mês, outro ano,
eu estou sempre aqui.



José Ángel Cilleruelo, Antologia,
trad. Joaquim Manuel Magalhães,
Lisboa: Averno, 2005

1 comentário:

sonia disse...

Gostei de ler seu texto. Passa serenidade e aceitação de outros valores que agora cabem melhor à sua alma.

Também aprecio cada vez mais o silêncio. No momento compartilho-o com minha cachorrinha Juju (uma fox paulistinha que me encanta o coração).

Abraços,
Sônia