[…]
Outros, terão pago o luxo do alfabeto num bonito jardim-escola
Com jovens educadoras de infância muito viris e velhas doces
Entre o espanto de haver tantos meninos e o seu temor.
Vejam eu: encontrei o alfabeto na sopa. Em cada domingo
No jantar que se chamava ceia e identificava o domingo
A avó Tina, como num teatro, vinha do fundo da imensa cozinha
Altíssima e misteriosa no branco mágico de todos os dentes
Com o andar pautado de uma cerimónia bem estabelecida
E depunha ao centro da comprida mesa de trez tábuas de pinho
A terrina do pato branco grasnando de bico para mim.
Água, sal, um dente de alho, uma unha de banha, massinha de letras.
A receita mais sóbria para a única sopa sem odor.
O alho era tic apenas, uma vénia à rotina, uma malícia.
Era e não era uma sopa. Era uma iniciação à teoria extreme da forma.
Ao domingo, isto é, nesta sopa, a malga costumeira
Cuja borda estava no horizonte semanal do meu nariz
Dispunha a saia em roda como uma mulher de Buarcos
Virava prato de borda larga, côvo ranço do horizonte
E sobre ele descia a nave brilhante dos prodígios
Lenta como uma coisa com motor, não como se caísse.
A avó, de pé, servia-me a primeira e derradeira concha.
Sem sombra sem som sólida suave sem um salpico
A sopa decorria no prato roubando-lhe o fundo
Onde a maranha de sinais surgia subindo do poço
Prolongado desde mim até ao mais longe de mim
Num ponto que não acabava, nunca acaba, no sítio impossível
Onde origem e fim é igual, no lugar que persigo quando prossigo.
Claro que convenho: pedagogia versus didáctica!
Mas permanece a diferença e a diferença embaraça.
[…]
O que é a escrita? Arpoar baleias? Petiscar enfados?
Brincar laboriosamente com letras na borda do prato?
O aceitar regras transgredindo regras, criar regras
Recusar tudo no aceitar de tudo mas intervindo sempre
Com uma colher de obstinação, duas colheres de fome,
Trez colheres de desdéns?
Fotografia: Willy Ronis, 1946
Poema: João Pedro Grabato Dias, Facto-Fado (edição do autor)
Sem comentários:
Enviar um comentário