segunda-feira, 30 de maio de 2011

S de Solidão (ou C de Comunidade) XXIII

Deixa de espreitar para o outro lado do que és, Maynard, de te esconderes nas esquinas de ti próprio, nas esquinas das ruas onde te perdes. Esse jogo não dá nada. É por de mais cansativo e inútil. Há aquela história do homem, Maynard, que quis fugir à própria sombra, e parece que foi já há muito tempo, e dizem que ele ainda anda a correr, que andará a correr pelos tempos fora, e o raio da sombra nunca mais o larga. Já sabes que a maior parte da gente que te rodeia é uma cambada. Ao fim e ao cabo, desde o dia em que a mamã deu um tipo à luz, ele começa a aprender a existir no inferno, a coexistir com os vários infernos, que estão dentro e fora das pessoas, que as pessoas trocam umas com as outras, mercadoria que se chama congénita fraqueza humana, que é traição, que é tédio, que é apática observância de conveniências, que é mentira, que é dúvida. E depois há umas pequenas alegrias pelo meio, que foram mesmo inventadas para tornar menos monocórdica esta grande e excepcional angústia que é o ferrete do homem contemporâneo (zás, catrapás, foi um lindíssimo fim de período, uma frase de ribalta). Se estou a brincar contigo, Maynard, é para ver se te desfaço a pompa, digo bem, a pompa do chamado juízo crítico, pois tu acabas mesmo por fazer da auto-análise um imenso carnaval de lamentações. Não és corajoso, Maynard, és cobarde. A maioria dos outros, ao menos, são safardanas sem andarem a esconder-se nas esquinas de si próprios, à espera que passe uma aragem de bons sentimentos para nela se refrescarem. Preferem não pensar nisso, e pronto. Comem o que podem, dormem o que podem, deitam-se com as mulheres que podem, que se lixe o resto, que se lixe o resto. Mas tu acabas sempre nisto, Maynard. O inefável tribunal de ti próprio: és o acusado, o juiz, o advogado e o júri. E és o público. És, principalmente, o público, porque estas coisas sem público não têm graça nenhuma. E antes de continuares a desafiar-te, tenho a dizer-te que já sei o que vai acontecer: vais considerar-te culpado, mas tens a atenuante da tal angústia, e isso até é um bocado aristocrático, fica-te muito bem, Beethoven para a esquerda, Proust para a direita, e ainda assim uma grande margem de melancolia, e depois a certeza de que um homem só é verdadeiramente solidário com a sua solidão. Deixem-no passar, diz o povo, deixem-no passar, porque ele sofre muito e é grande, olha o sofrimento bem nos olhos e tem a coragem de continuar a viver. És um narciso da merda, Maynard. As piruetas que tu fazes para demonstrares a ti próprio que não és pior do que os outros.


- Dennis McShade, Requiem para D. Quixote (1967)

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