Pensei, eu podia ter descido aqui naquele dia, talvez tivesse desenhado um lago tranquilo e as últimas flores de Setembro, e voltado para Londres sem cicatrizes. Embora esta cicatriz faça parte de mim, não quero que desapareça, era algo que faltava escrever no meu rosto, nunca gostei de tatuagens, mas era como se esta linha faltasse, talvez tudo tivesse acontecido para que o meu rosto ficasse acabado...
Ana Teresa Pereira
in Karen, Lisboa, Relógio D'Água, 2016
[ID, Nazaré, 08/10/11]
Sábado, 6 de fevereiro
Estou a ler a tradução francesa de uma série de contos de Henry James. A sedução do outro? Ou o outro que procuramos em nós mesmos? E que no final quando descobrimos que foi um longo passo, um percurso, um tempo interior intensamente vivido tão ao lado do outro, tão com o outro, que num instante por circunstância da história comum se desfaz; se anula por qualquer intempérie quase meteorológica ou por uma caso ou fatalidade que irrompe na vida comum, no dia-a-dia de um ou do outro - tudo vai continuar, quase, como se coisa alguma se tivesse passado. Uma ferida ficou aberta no ar. Está quase em cicatriz. E no início dos inícios, quando tudo chegou ao fim, ou melhor, ao nenhum fim que sempre povoa a história das grandes amizades (...), percebe-se como a partida para o outro, para nós mesmos no outro, na invenção do outro e do outro em nós mesmos, tudo não passou do grande temor pelo desconhecido; um sucedâneo de descida à caverna e de ultrapassagem desse pavor. Olhamos, então, para a cicatriz que restou, para a incisão na pele, na carne, na alma. O outro compensa a realidade, supera-a; é uma ardil com que fintamos a própria existência. Uma espécie de bem-aventurança para contrapesar a esperança, que corrige a raiva ou o pessimismo da fortaleza que nem eu nem o outro, que nenhum de nós já sabe encontrar nos ardis da vida. Sendo estes iguais, exactamente iguais ao tempo da vida.
João Miguel Fernandes Jorge
in O Próximo Outono, Lisboa: Relógio D'Água, 2012
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