quarta-feira, 19 de outubro de 2016

A VIDA


Da flor japonesa à coxa da rã galvanizada, vai ser preciso dormir muito para nos apercebermos da transformação. Da porta que é um corpo-a-corpo, à janela que é uma peleja, o soalho é um papagaio, o tecto um corvo que teve medo.
Há ainda a recordar do dia seguinte, a recordação de atrozes aventuras num nevoeiro de enforcado. Sabe que foi denunciado, que um parapeito está dali em diante à sua volta para o impedir de se lançar no relógio inútil que se pôs a indicar as horas. A aurora da tarde filtrada lembra-lhe a carne pura que, na proximidade dos homens, sempre desaparece num ruído de canaviais. Porque ele tocará a carne muito tempo sem a sentir e, quando a sentir, será à maneira daqueles animais encantadores que apenas sonham com a liberdade.
Toda uma rede de caretas e de contorções se opõe a que a jangada da sua idade regresse à secreta fonte do seu coração. A tarde em vão fecha a porta, uma estrada de passos, de sons, de esperança e de fadiga sempre lhe mostra aquelas grandes construções negras em que tudo para ele se compõe.
O vago substitui pouco a pouco o determinado. Em vez do sangue estende-se o mata-borrão, o mata-borrão que se embebe nas suas cartas sempre maniacamente datadas de Creusot. Olhos puros de nuvens pousam sobre ele como a ave na sua sombra. Lâmpadas varrem com a sua saia de pedra a escadaria de prata que vai dar ao grande ar dos países sem janelas. Que procura então este homem que faz uma mancha na terra? Este pobre quebra-luz lá está sobre a lâmpada das estrelas cadentes. Debate-se com a sombra matizada que choca nas suas pregas ovos de galinha-d’água, donde nascerão em hora adiantada o dever, a oportunidade a pequena felicidade e o fracasso. Os poderes do desespero com as suas rosas de sabão, os seus afagos desencontrados, a sua dignidade mal vestida, as suas respostas fugidias a perguntas de granito apoderam-se dele. Levam-no à escola das escórias, depois de o terem trajado com um avental de fogo. Persuadem-no de que o cabo de vassoura das bruxas cai a pique numa eternidade grotesca de retaguardas brilhantemente esclarecidas. Bocejam-lhe na cara sobretudo, e o que tem de mais trágico, bocejam sobre a mulher sem sequer terem o cuidado de pôr a mão sobre a boca, bocejam dos frutos da mulher com aroma de amêndoas amargas, bocejam da beleza, bocejam da duração, bocejam da recusa desta beleza e desta duração.
Uma manhã, ele lá está, a ver respirar uma cabeleira de anémonas. A rua saúda com todas as suas rodas, Entre todos os astros este... entre todos os astros… este que se submete a este astro inesquecível... Está tão perfeitamente só que se exceptua do total. Fita o dorso dos livros que se arqueiam. Escuta a música que brilha nos sapatos. Por vezes, ao meio-dia, sorri doze vezes. Sorri também à noite, quando tem medo. Põe em todas as suas sensações as algemas do sorriso.


André Breton e Paul Éluard, A Imaculada Concepção, 
Lisboa: Estúdios Cor, 1972

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