quinta-feira, 26 de abril de 2012

T de Tratado de Pedagogia (XLVIII)

quem esperará em vão?

sítios: longas variações do corpo, traça a cuspo o círculo da cidade vazia, delimita vidros, retortas buriladas, jardins mínimos de begónias e terra humosa, reflexos sitiados, de onde vem a luz? como coagula iridiscente? e atravessa espelhos e desdobra labirintos? passeia com a mulher de verde, pausa de sempre, saiu do enorme sono anterior vibrátil, surge nas esquinas das ruas nas correntes de ar súbitas de verão na paz que sobrevive após a morte dos deuses, sinto-me tão bem nesta camisa branca e nestas calças de linho que poderia dizer que acabou de chover, se procuro o corpo é para nele me debruçar irreconhecido mais de mim que dos outros, e ele que no tempo anterior era pesado como os substantivos da infência gora leve aéreo pronto a morrer, olho os quinze anos nas margens das vogais abertas, dos espantos e das colunas às quais nos encostamos sempre para esperar, colunas onde recolhemos os olhares sentidos as fugas os reminiscentes campos, onde todas as interrogações foram postas e todas elas, mas todas, não abriram, antes o seco som da pólvora ou de minúsculas metralhadoras portáteis instrumentos malignos de coerência, já não posso estar parado, nem escrever os livros da glória, nem transmitir o saber todo íntimo de ter atingido as categorias definitivas do espírito, movo-me porque um minuto à secretária é o possível minuto de espera de alguém que se vai cansar e partir

nomes que se dizem ou soletram ou a medo nomes que talvez sejam a morte dos desejos esquecidos das enciclopédias das universidades

jardins de araucárias e meninas lassas em seus vestidos transparentes de chiffon e pássaros violentos na breve vagina e os inventários académicos a corroer o mundo

retortas onde espessos alquimistas dessorados esperam a mprte enquanto trémulos se aquecem na imagem laboratorial do sol e um cogumelo lhes irrompe do lábio inferior para que um adolescente o coma no futuro de faca e garfo
quando a viagem tende a ser a incisão do voo o homem berra para os horizontes de cartolina

pergunta
o menino à professora de trabalhos manuais: senhora, este é o azul do céu? este papel de lustro?

o homem diz: mãe
e pombos ancestrais cagam nas estátuas dos heróis


Rui Nunes, Os deuses da antevéspera,
Lisboa: Parceria A. M. Pereira, 1977

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