segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

E de "É assim que se faz a História. Sem palavras a mais." - XI b

[…]
Desde que existe um público literário (quer dizer: desde que há uma literatura) o leitor, colocado diante de uma grande variedade de escritores e de obras, reage de duas maneiras: por um gosto e por uma opinião. Instalado diante de um texto, vai produzir-se nele o mesmo clic interior que sentimos, sem regra e sem razão, quando encontramos alguém: "ama" ou "não ama", sente ou não sente, à medida que vai virando as páginas, a sensação de ligeireza, de liberdade pura, embora suspensa, que se pode comparar à sensação de um galope sobre um cavalo de raça. Pode-se dizer, efectivamente, no caso de uma feliz conjugação, que o leitor adere à obra, enche de segundo a segundo a capacidade exacta da forma vazia que vai aprofundando numa rapidez voraz, formando com ela, no vento contínuo das páginas viradas, esse bloco de velocidade lubrificada e sem falhas cuja recordação depois da última página vir bruscamente "cortar o gás" nos deixa atordoados e vacilantes como num princípio de náusea. Alguém que tenha lido um livro desta maneira fica preso a ele por um laço forte, uma espécie de aderência, qualquer coisa parecida com o sentimento vago de ter sido iluminado; durante uma conversa, cada um poderá reconhecer noutrém, mesmo só através de uma inflexão de voz particular, esse sentimento quando ele se exprime, por vezes com os mesmos rodeios e o mesmo pudor próprios do amor, e se uma certa ressonância se produz dir-se-ia que se tocaram dois fios eléctricos. É este sentimento, e ele só, que transforma o leitor em prosélito fanático que não descansa (sendo esse, talvez, o mais desinteressado sentimento que exista) enquanto não fizer partilhar por outros a sua singular emoção. Há livros que nos queimam as mãos, que semeamos como por encanto, que compramos meia dúzia de vezes sempre contentes por nunca os vermos voltar. Cinquenta leitores deste quilate, fazendo incessantemente vibrar quem os rodeia, são outros tantos portadores de vírus filtrantes que chegam para contaminar um vasto público – bastam algumas dezenas de anos, por vezes um pouco mais, frequentemente muito menos; a glória de Mallarmé, como se sabe, não teve outro veículo: cinquenta leitores que se deixariam morrer por ele.

Julien Gracq
in A Literatura no Estômago, pp.15 e 16

Sem comentários: