(Re)lido hoje, na
inauguração da exposição “Fracções”,
de José Francisco
Azevedo e Ruth Rosengarten
– Teatro da Politécnica
UMA ESPÉCIE DE PERDA
Usámos a dois: estações do ano, livros e uma música.
As chaves, as taças de chá, o cesto do pão, lençóis de linho
e uma cama.
Um enxoval de palavras, de gestos, trazidos, utilizados,
gastos.
Cumprimos o regulamento de um prédio. Dissemos. Fizemos.
E estendemos sempre a mão.
Apaixonei-me por Invernos, por um septeto vienense e por
Verões.Por mapas, por um ninho de montanha, por uma praia e uma
cama.
Ritualizei datas, declarei promessas irrevogáveis,
Idolatrei o indefinido e senti devoção perante um nada,
( - o jornal dobrado, a cinza fria, o papel com um
apontamento)
sem temores religiosos, pois a igreja era esta cama.Da varanda podia saudar os povos, meus vizinhos.
Ao fogo da lareira, em segurança, o meu cabelo tinha a sua cor
mais intensa.
A campainha da porta era o alarme da minha alegria.
Não te perdi a ti,
perdi o mundo.
Ingeborg Bachmann, O
Tempo Aprazado,
trad. Judite Berkemeier
e João Barrento,
Lisboa: Assírio &
Alvim, 1992
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