quarta-feira, 21 de novembro de 2012

F de Fazer Fotografia (LXXI)


(Re)lido hoje, na inauguração da exposição “Fracções”,
de José Francisco Azevedo e Ruth Rosengarten
– Teatro da Politécnica

 

UMA ESPÉCIE DE PERDA

 
 
Usámos a dois: estações do ano, livros e uma música.
As chaves, as taças de chá, o cesto do pão, lençóis de linho e uma
          cama.
Um enxoval de palavras, de gestos, trazidos, utilizados,
          gastos.
Cumprimos o regulamento de um prédio. Dissemos. Fizemos.
          E estendemos sempre a mão.
 

Apaixonei-me por Invernos, por um septeto vienense e por
          Verões.
Por mapas, por um ninho de montanha, por uma praia e uma
          cama.
Ritualizei datas, declarei promessas irrevogáveis,
Idolatrei o indefinido e senti devoção perante um nada,
 

( - o jornal dobrado, a cinza fria, o papel com um apontamento)
sem temores religiosos, pois a igreja era esta cama.

 
De olhar o mar nasceu a minha pintura inesgotável.
Da varanda podia saudar os povos, meus vizinhos.
Ao fogo da lareira, em segurança, o meu cabelo tinha a sua cor
          mais intensa.
A campainha da porta era o alarme da minha alegria.
 

Não te perdi a ti,
perdi o mundo.

 

Ingeborg Bachmann, O Tempo Aprazado,
trad. Judite Berkemeier e João Barrento,
Lisboa: Assírio & Alvim, 1992

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