terça-feira, 27 de novembro de 2012

P de Poética - XXXIV b


Os inocentes são por assim dizer as musas dos criminosos. Mas há poucos inocentes, não conheço nenhum, e não se busque sobretudo entre as crianças: as crianças são monstruosas, eu sei, fui criança muito tempo, e o meu talento era monstruoso, o talento visitavelmente simples de respirar, mexer-se, propor uma palavra, uma frase, interpretar as coisas segundo a lei inspirada. A inocência é a tarefa de uma vida e essa vida deve ser então redonda, completa. Não sei de vidas completas.

De modo que os criminosos acabam por incitar-se uns aos outros, e tudo parece pequeno: ódio, vingança, crime; pode-se olhar face a face qualquer assassino: nenhuma estrela de primeira grandeza conduz essas biografias nocturnas; têm-se pela frente apenas as magias menores.

Alguns poetas procuram atravessar as portas, e se a palavra treme e faz tremer é um acto tremendo, uma passagem para a tenebrosa matéria de certas realidades, tenho ouvido pouco dessa palavra sísmica; estamos num tempo verbal manso. O arrepio que às vezes julgo percorrer uma voz, escuto melhor, não, não é daquela força com que se falam inocência e crime. Os poetas cumprimentam o dicionário, a gramática, a regra das formas, trazem luvas para trabalhar as massas sangrentas. E saem limpos como de cirurgias a raios laser. Não compreendo. Porque penso em todos aqueles que estão cobertos de sangue, não apenas as mãos bárbaras, mas os rostos erguidos, as bocas que devoram corações, os próprios corações postos fora; e a soberania deles, selvagem e nobre e inexorável e arrogante, funda-se no enigma do sangue e da luz, é um diálogo rítmico, terrestre, entre crime e inocência. O inferno não é o mal mas a fascinação que entre si exercem a candura e o saber. São figuras antigas, essas, monárquicas, loucas, trono e ceptro resplandecem. Por isso as venero. Os xamãs, os sacerdotes, os profetas. E os do verbo primitivo e furioso, sangue e sopro, a lua nas trevas, os animais solares, os fatais teoremas da dança e do abismo. Dante, Villon, Camões, Shakespeare, Blake, Nietzsche, Rimbaud, Sá-Carneiro.

Os outros, aqueles que vejo longe, que estão por aí, que os maus tempos tépidos prometem, passarinham pelos corredores, levantam à volta uma poalha iridiscente, nem se consegue sequer atribuir-lhes uma vida, são apócrifos.

E então ponho-me atento aos indícios: há um quarto aceso na cidade, a noite cerca esse quarto recôndito na sua luz, cada pequena coisa respira com destino à insónia invisível; presumo de imagens que se cruzam na memória, imagens insondáveis; presumo da crispada exaltação com que a insónia vigia o mundo que dorme. [...]


Herberto Helder
in Telhados de Vidro n.º4,
Lisboa: Averno, Maio de 2005

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