sábado, 12 de janeiro de 2013

EM SOCIEDADE



     Não me arrependo - mas só porque o arrependimento não é uma forma suficiente de desespero - do tempo em que era desconfiado, em que ainda esperava encontrar algum inimigo para vencer, alguma brecha a talhar na natureza humana, algum esconderijo sagrado. A desconfiança representava ainda uma pausa, a constatação aprazível do concluído. Um fio puxado por uma andorinha que, de asas abertas, imita a ponta da flecha engana tanto a aparência do homem como a sua realidade. O vento não vai aonde o homem o quer levar. Felizmente. Eis as fronteiras do erro, eis os cegos que se recusam a pousar o pé no degrau em falta, eis os mudos que pensam com palavras, eis os surdos que silenciam os ruídos do mundo.

     Os membros cansados, palavra de honra, não se separam facilmente. O seu desconhecimento da solidão não os impede de se entregarem a dissimuladas experiências pessoais de física divertida, migalhas do grande repouso, tantas gargalhadas minúsculas das glicínias e das acácias do cenário.  
     A fonte das virtudes não secou. Ainda há olhos belos e grandes, bem abertos para contemplar as mãos laboriosas que nunca praticaram o mal e que se aborrecem e que aborrecem toda a gente. O cálculo mais rasteiro faz com que se fechem quotidianamente estes olhos. Mas eles só privilegiam o sono para poderem mergulhar depois na contemplação das mãos laboriosas que nunca praticaram o mal e que se aborrecem e que aborrecem toda a gente. O odioso tráfico.

     Tudo isso está vivo: esse corpo paciente de insecto, esse corpo apaixonado de pássaro, esse corpo fiel de mamífero e esse corpo magro e vaidoso do monstro da minha infância, tudo isso está vivo. Só a cabeça morreu. Tive de a matar. O meu rosto já não me compreende. E não tenho outro.


Paul Eluard,  Les dessous d'une vie ou La Pyramide humaine, 1926
[Trad. ID]

Sem comentários: