quinta-feira, 28 de abril de 2011

S de Solidão (ou C de Comunidade) XVIII

[Espero sinceramente que hoje, quando contar quantos somos, a matemática dos afectos continue a bater certo e a dar o mesmo total de ontem e de anteontem. É das poucas ciências em que preciso de confiar para estar viva. ]




CONTRA MUNDUM



This is the way the world ends
Not with a bang but a whimper.


T.S. Eliot



Hoje quantos somos? Quantos ainda
sentem o gosto, esse cheiro
escapando, estranho
como a nossa juventude.
Adiados vezes suficientes, mais
atrevidos ainda, num país que preferia
não, que gosta muito de chamar
à parte, de dizer que isto não é próprio,
não se faz, ou
explicar as suas razões e,
no fim, pedir uma atençãozinha.

Tenho o sono,
há dias, semanas já, sem funcionar.
Não me larga a ideia de que
endoideço
. A boca cheia de asas,
um rígido tremor, e quando a abro

nada. E então levo-me por aí, a pé,
a sentar-me pelos cafés, só, a dissolver-me
nuns versos. A chuva perde o juízo,
cai de todos os lados e cansa
a manhã, com as suas cores frágeis,
arrastadas, e aromas pútridos.
Mesmo a sombra
cheira a deus
nestes jardins de vento.
Fico a olhar umas flores afogadas
nesse charco de onde bebo
um último verso antes de ir-me.

Decoro detalhes, variações
mínimas neste
entardecer alucinado. Vou pela hora
em que a loucura se torna doce,
monologando como os velhos, a desfiar-me
pelos bairros, afogado em sonho.
Da boca cariada das ruas de Lisboa,
oiço e aproveito restos de frases esquecidas
de sentido, vozes já sem ninguém,
um inventário de coisas
que a música
sorve. Todas estas canções que ainda
nos procuram no sangue
um coração antigo. Quase nada
resta.

Sonho, enfim, a escuridão
dentro de uns cabelos
, lábios rombos de
amor, mesmo um assim, tão rasteiro. Uns
olhos verdes, quietos. Beleza dessa,
roçando a insolência.
Depois só a sombra parada nestas mãos,
de um corpo que se afastou e deixa
todo o seu peso num nome,
florindo minuciosamente,
num odor agudo, vago, tardio.

A cama baixa ao nível cruel
das recordações, desfeita por mulheres
dessas de dar à corda. O ébrio galope
de uma raça que já sabe
como tudo acaba
e continua a ter pressa.

Mas hoje quis, como
só poucos,
cortar ambas as mãos, deixá-las
sobre a pedra de uma igreja em ruínas,
rezando
, alimentando
as religiões do ritmo. Sons
agarrando a vida para escorchá-la,
fazê-la nascer de novo
e a uma ânsia nova, de olhos rasgando
em perseguição, que fareje e busque,
embosque e faça presas, morda e mate
com a sua boca incrível.

Quantos? Poucos, decerto, mas
em nenhuma época foram precisos
muitos.



- Diogo Vaz Pinto, Nervo, Lisboa: Averno, 2011

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