[...] O chamado acto de viver não passa de um acto de imaginação. O mundo - que sempre tratámos de Mundo "exterior" - só se revela pela introspecção! Enfrentando este paradoxo cruel, mas necessário, o poeta verifica que lhe crescem cauda e orelhas, para melhor nadar contra as correntes da estupidez. O que parece ser um acto arbitrário de violência é precisamente o oposto, porque invertendo assim o processo ele une a corrente desorientada e apressada da humanidade ao calmo, tranquilo, imóvel e inodoro plano de onde provêm os seus móbeis e a sua essência. (Sim, mas é doloroso descobrir isto!) Se ele devesse abandonar o seu papel, toda a esperança de encontrar um ponto de apoio na superfície escorregadia da realidade ficaria para sempre perdida e tudo o que existe na natureza desapareceria! Mas este acto, o acto poético, tornar-se-á desnecessário quando cada um o puder realizar por si próprio. E o que os impede, perguntas tu? Bem, todos nós tememos naturalmente abandonar a nossa lastimável moralidade racionalizada - e o salto poético que eu preconizo fica justamente do outro lado da barreira. Aterra-nos simplesmente porque nos recusamos a reconhecer em nós próprios as horríveis goteiras que ornamentam os paus totémicos das nossas igrejas - assassinos, mentirosos, adúlteros e assim por diante. (Uma vez reconhecidas, as máscaras de cartão desvanecem-se.) Quem ousa o enigmático salto na realidade heráldica da vida poética descobre que a verdade possui a sua própria moralidade específica! Não mais se torna necessário usar funda. No interior da penumbra desta espécie de verdade a moralidade é desprezível, posto que não passa de um dado, uma parte da coisa, e não simplesmente um travão, uma inibição. Existe para ser vivida e não para ser pensada. [...]
Lawrence Durrell, Clea,
Lisboa: Editora Ulisseia, 1961
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