domingo, 28 de outubro de 2012

R de Revisões da matéria dada - V c


EPÍLOGO A UM FILME
DEMASIADO TARDE



     Um dia em que perguntei a Raimu porque é que ele nunca ia ver os seus filmes, respondeu-me que já não os podia aperfeiçoar e que isso o deixava doente.
     Eis o drama das máquinas. Atraem-nos. Devoram-nos. Fixam-nos.
     Durante A BELA E O MONSTRO, o simples trabalho manual esvaziava-me a cabeça e impedia-me de me criticar. Depois, é a ordem da desordem, a desordem da ordem, uma massa onde o olhar se afunda e que anquilosa o espírito crítico. Impossível corrigir, a menos que se regresse ao estúdio, se reconstruam os cenários, se reúnam os artistas dispersos.
     Foi durante o festival de Cannes que encontrei o verdadeiro fim do meu filme. É certo que este novo fim obrigaria a refazer todas as imagens precedentes. Não passa, pois, de um sonho. Posso apenas sentir-lhe a falta ao acordar.
     A minha equipa empenhara todo o seu esplendor no papel do Monstro. Quando Jean Marais se transforma em Príncipe Encantado, ela já não tinha mais nada a dar. Por isso o público ama o Monstro e sente a sua falta. Prefere a lagarta à borboleta em que ela se transforma.
     Precisava de outro tipo de fim. O Monstro, morrendo de amor, deveria implorar à Bela que fizesse a confissão que lhe permitiria reviver como Príncipe Encantado. A Bela confessaria de todo o coração, mas o Monstro pedira novamente uma confissão que surgisse por si só. Além disso, a Bela não quer ir contra o que sente. Esta transformação não lhe agrada; não a deseja. E o milagre não funciona. E o Monstro não se transforma. E morre.
     A Bela fica sozinha no mundo, de luto pelo seu Monstro. Resta-lhe apenas a memória de uma aventura extraordinária. Não quererá príncipe, nem marido, nem muitos filhos.
     O conto perderia a sua exactidão e o seu conformismo relativamente aos contos de fadas que quis seguir. Mas ganharia em humanidade.
     Infelizmente, como o Monstro, posso apenas dizer: “É demasiado tarde.”


Jean Cocteau, Le foyer des artistes,
Paris: Librairie Plon, 1958

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