quarta-feira, 24 de outubro de 2012

S de Sense of Snow - VIII b

I.
CEGO POR VONTADE E POR DESTINO



PORQUE TUDO É IGUAL E TU SABES,

chegaste à tua casa, e fechaste a porta
com o mesmo gesto com que se tira um dia,
com que se arranca a folha atrasada do calendário
quando tudo é igual e tu sabes.
Chegaste à tua casa
e, ao entrar,
sentiste a estranheza dos teus passos
que já soavam no corredor antes de chegares
e acendeste a luz para voltares a comprovar
que todas as coisas estão exactamente colocadas como estarão dentro de um amo;
e depois
tomaste banho, respeitosa e tristemente, do mesmo modo que um suicida,
e olhaste para os teus livros como as árvores olham para as suas folhas,
e sentiste-te só,
humanamente só,
definitivamente só porque tudo é igual e tu sabes. 


[...]


SIM, CHEGUEI À MINHA CASA, CHEGUEI, POR FIM, À MINHA CASA,
e agora é a mesma coisa de sempre,
a mesma nogueira diária,
os quadros que ainda não tive tempo de pendurar e estão sobre a mesa que a minha irmã cobriu de folhos,
a madeira que dói,
e a pequena luz desabitando a nova habitação,
e a pequena luz que é como um vazio na penumbra,
e o copo para ninguém
e o punhado de sonhos,
e as estantes,
e estar sentado para sempre.
Sim, voltei da rua; estou sentado;
a neve já começa a ser bastante
mas continua a cair,
continua tudo a cair, continua a tornar-se igual,
continua a tornar-se fim,
continua a cair,
continua a cair tudo o que era Europa, o que era meu e tinha chegado a ser mais importante do que a vida,
o que nasceu de todos e era como uma fresta de luz entre a minha carne,
continua a cair,
continua a cair tudo o que era limpo,
o que já estava livre,
o que já estava indolor à conta da vida,
continua a cair,
continua a cair tudo o que era humano, certo e frágil
à semelhança de uma menina de seis anos que chorasse no sono,
continua a cair,
continua a cair tudo,
como uma aranha que tu visses cair,
que tu visses cair sempre,
que tu próprio visses,
tu, tristemente próprio,
que tu visses cair até te tocar na pupila com as suas patas felpudas
e aí a visses toda,
toda solteiramente a ser aranha,
e depois a sentisses penetrar no teu olho,
e depois a sentisses caminhar para dentro,
para dentro de ti caminhando e ocupando-te,
ocupando-te de aranha,
e perceberás que fazias parte do seu caminho porque cegavas dela,
e mesmo que depois a sentisses igual,
igualmente quebrada
e mesmo que…

– Boa noite, senhor Luis! –


[...]


Luís Rosales, La casa encendida, 1988
[Trad. ID]

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