sábado, 22 de dezembro de 2012

E de "É assim que se faz a História. Sem palavras a mais." (XXXIX)

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o homem vendia
sacas
sacas de plástico grosso
com aqueles quadrados grandes
vermelhos e azuis

apregoava
na Praça da Figueira
muito alto
um barítono aspirado profundo
que ecoava
e às vezes
fazia estremecer
as crinas do cavalo
da estátua

isto era
há dois três anos
talvez há quatro
ou há mais

no ano passado
tinha as sacas no braço
mas pouco apregoava
e baixo
os supermercados
vendiam sacas dessas
baratas e mais elegantes
tinham motivos de fruta estampados
fruta rara e cara

o tom da pele
queimada
do dia inteiro ao sol
era ele
a cara dele
mas vê-lo
faz empalidecer
é informação a mais
sobre a vida
subterrânea
em pleno dia

foi ontem mesmo
não sei
o tempo passa depressa
mas o medo suspende o tempo

silencioso
a cara reduzida
como a tsantsa
do conto de Sandoz
e o corpo muito vergado
sem nada para vender
sem pedir nada
encostado ao muro
dobrado
em busca
dum ponto qualquer
no chão
um ponto
para mim invisível
que o atraía
como um íman
prestes a apanhá-lo
lá estava ele
no lugar de sempre

falta ainda dizer
que o homem é cego

para onde vai ele
à noite



Alberto Pimenta,  De Nada,
Lisboa: Boca, 2012

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