[...] Nenhum dos homens que, de boné na mão, vejo à porta de casa quando passo a cavalo ao fim da tarde, imagina que o meu olhar [...] se passeia de com uma nostalgia silenciosa pelas tábuas podres debaixo das quais eles costumam procurar, depois da chuva, as minhocas para a pesca; que esse olhar mergulha através das grades da janela estreita no interior abafado da casa onde, a um canto, a cama baixa com lençóis de cor parece sempre esperar por alguém que vai morrer, ou que há-de nascer; que os meus olhos se demoram nos cães jovens e feios ou no gato que se esgueira, coleante, por entre vasos de flores partidos; e que esse olhar busca, sob todos esses objectos pobres e grosseiros, espelho de uma vida rústica, aquele cuja forma discreta, ali abandonado, aquele cuja essência muda possa tornar-se a fonte daquele êxtase enigmático, sem palavras e sem limites. Pois o meu sentimento de felicidade inominável virá mais facilmente de uma fogueira de pastores distante e solitária do que da contemplação do céu estrelado; mais do cantar de um último grilo que já sente a morte no vento outonal que empurra as nuvens de inverno sobre campos desertos do que do eco majestoso de um órgão. [...]
Hugo von Hofmannsthal, Uma Carta - A Carta de Lord Chandos,
trad. e posfácio de João Barrento,
Belo Horizonte: Edições Chão da Feira, 2012
2 comentários:
lindíssimo...
é assim.
um beijo.
marta
é assim :)
beijo
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