segunda-feira, 19 de abril de 2010

P de Primavera (VIII)

Porque a Primavera nem sempre depende dos meteorologistas, mas sim dos amigos. Às vezes é apenas uma flor que escapa de uma natureza morta e se passa de mão em mão dentro de uma caixa. Ou uma flor guardada entre as páginas de um livro improvisado. Ou uma cave em que há noite convivem túlipas e harpas.



FLOR SUFICIENTE

Uma idade em que nos apetecia ainda
falar de idade, sem futuro nem constrangimentos.

Para o Manuel
A doce insolência de uns dias
mais a sul, esse regresso pontual aos lugares
onde fiz à pressa os primeiros seis anos
e quis ser tudo menos, é claro,
poeta, emprestou-me uma razão.
Na demora do crepúsculo a luz
inchava e fez parecer
belo o fim da rua que subi.

Entro no supermercado, atravesso
sozinho os corredores enquanto penso
na glória obscena e acessível
deste nosso princípio de século.
Bolachas e iogurtes, fiambre, um saco
de café, cervejas e sabão. Não é
o real quotidiano, mas umas coisas
que tinha em falta quando saí.

Volto por um outro caminho
a ver se espreito um pouco dessa vocação
litoral. Putos dos que têm ainda
as ruas e montam ventos (desses
que às miúdas levantam as saias), andam
aos chutos na fuça do mar, trepam descalços
às árvores e fazem guerra com a fruta.

Um acerta outro em cheio e grita
morreste!, esse cai cá abaixo. Larga cuspo
nos dedos, esfrega a estrela de sangue
que lhe abre o joelho e volta lá para cima.
Morrer e matar, também brincámos
a isto. Mas a coisa depois foi
ficando séria. Deixámos para trás
infâncias épicas, muitas mesmo
inventadas. O tempo mordia-nos então
com doçura, agora, às vezes,
magoa.

À distância (segura) de algumas pedradas,
devolvemos imagens à memória,
nós como eles, trincando o caule das azedas
com uns dois, três cães velhos
sempre por perto, ao alcance de um
último afago, de vez em quando as sobras
do lanche, pedaços do pão com manteiga.

Um dos miúdos isolou-se entretanto.
Com um isqueiro, a chama lambendo
as murtas, ele soprando a cinza. Os olhos
à frente, devagar, batendo a beleza cansada
de terra baldia, a medir com um suspiro
ou mais a dimensão desse jardim deserto.

O mesmo assobio, tão antigo,
o mesmo vigor melodioso, preso entre
aqueles dois lábios breves e a falta
de ritmo que dói nestes versos.
Um silêncio afogando-se noutro
e a cor que o atingiu aos poucos.
Abrindo o mais que pôde, uma flor
foi suficiente para aproximar-nos
em idade e no resto.

Diogo Vaz Pinto

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