sábado, 30 de novembro de 2013

S de Sense of Snow (XIII)



Izis Bidermanas, 'Maurice Utrillo', 1950s



Maurice Utrillo,1912

H de Humanidade (II)


A HUMANIDADE EM AGOSTO


para a Inês, que esteve lá


Era uma tarde assim, como já sabíamos
ou devíamos, pelo menos, calcular:
insuportável o calor, duvidosa a alegria.
Mas íamos fazer compras e
era Agosto, mês de pouca gente

que viu, como nós, o autocarro
parar bruscamente.
Quatro pequenos cães, de famílias
por certo bem diferentes, atravessavam
num sereno susto o alcatrão. Desconheciam
que tudo (sim, não é apenas o tabaco)
pode matar num dia qualquer os que estão vivos.

Seguiam quase ordeiros, sem caminho.
E não sabiam. Como poderiam saber
que eram as vítimas ocasionais
de umas férias mais tranquilas
para esses mesmos que, na sua excessiva
humanidade, os abandonaram à nenhuma sorte?

E a caravana passou, rodeada de silêncio.
O mais pequeno e farrusco, o que
vinha atrás, parecia não acreditar ainda
que era este o seu destino, nem urbano
nem campestre; simplesmente intolerável.
Doía muito ver-lhe os olhos, e ser humano
como os humanos que ali se libertaram
dele, para garantir a liberdade que não têm.

Pouco tempo depois, o autocarro arrancou.
Chegaremos mais devagar à mesma morte. Mas
chegaremos. Eu sempre achei a humanidade o que
de pior havia sobre a terra. Preferia, às vezes, não ter razão.


Manuel de Freitas
in Telhados de Vidro n.º 9, 
Lisboa, Averno, Novembro de 2007

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

O de "O mar, o mar" (IV)

 
"[...]
E o mar serenava por um instante e as sombras iam-se.
E eu esperava ansioso que ao silêncio se seguisse o seu marulhar sinistro e angustioso, e n'estes momentos tão longos de ansiedade estremecia se o estalar da madeira, ressequida do ar do mar e novamente humedecida da tempestade, se fazia ouvir, ou se, algum prato mal seguro na prateleira, descaía, fazendo ouvir um rumor quase imperceptív...el n'outra ocasião e medonho n'aquela.
E desejava novamente o doido assobiar do vento e o cavo marulhar do mar.
[...]"


Ângelo de Lima, Poesias Completas,
Lisboa, Assírio & Alvim, 1991
 

domingo, 24 de novembro de 2013

E de "É assim que se faz a História. Sem palavras a mais." (XLVIII)


PASTELARIA



Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante!

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao [precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra



Mário Cesariny, Nobilíssima Visão (1945-1946),
Lisboa, Assírio & Alvim, 1991




[Lisboa, 23/11/013]

sábado, 23 de novembro de 2013

H de Heart of darkness (II)


quinta-feira, 21 de novembro de 2013

L de Louvor e simplificação


23. Mas falemos dos animais. O interessante nos animais é que nunca simplificam, ao contrário dos homens. Os homens simplificam, porque conseguem ver sempre outra camada e outra e outra; no fundo, são animais que antes de simplificar complicam, é a sua natureza, a do homem. E como sabem complicar à brava, por vezes, entediam-se ou ficam cansados ou distraídos, olham para outro lado e zás: eis que o estranho sucede: simplificam. Louvados sejam (eis um à parte) os homens que simplificam (é o que me parece).
 
 
Gonçalo M. Tavares, "Breves notas sobre o poder"
in Granta n.º2, Lisboa, Tinta-da-china, 2013
 
 
 
*
 
 
 
CAMADAS
 
 
Um quarto como há mil, assim parece.
Raízes de cabelo o tecto são.
Muito pó, sim. Um armazém talvez.
Mas íntimo. Sem nada de um salão.
 
É a primeira vez que eu aqui estou,
Pois nunca ousara entrar. Ali diante,
Pela porta me passava já na infância
Um cheiro adocicado, penetrante.
 
Há um armário. Eu venço a timidez.
Gaveta por gaveta, com mãos ousadas,
Desvelo. Vejo caixas. Mas eu sei
Que a essas manterei sempre fechadas.
 
 
Gerrit Komrij
in Contrabando - uma antologia poética, trad. Fernando Venâncio,
Lisboa, Assírio & Alvim, 2005

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

E de Espinhas para um gato (XVI)


A CAMA DE FERRO
 
 
Olham uma menina e um gato
Num espelho qual buraco de fechadura
Vendo outra menina e outro gato.
 
Coisa alguma o fardo alivia
Do espelho e do armário de gavetas.
A eles se agarrou muita poesia.
 
Poemas como caixas, dentro nada.
Ou, se algo houver, será apenas isto:
Triste cama em marquise envidraçada.
 
 
Gerrit Komrij,
Contrabando - uma antologia poética, trad. Fernando Venâncio,
Lisboa, Assírio & Alvim, 2005 

sábado, 16 de novembro de 2013

O de "O mundo está escuro: ilumina-o"




Maria Yudina
(Petrograd University, early 1920s, photo from the collection of Yakov Nazarov)



sexta-feira, 15 de novembro de 2013

D de Dansa (III)


ELA DANÇA SOBRE PREGOS


Versos magoam, a folha angustia.
Dão guinadas no corpo, infernais.
É o teu mal: leste poemas a mais.

Melhor perderes-te em música obscena,
Melhor deitares-te a ouvir a cantilena
Do fogo consumindo uma pirotecnia,

Melhor rebolares-te em sei lá quê
Do que a dor e o decoro de que vê
Ir-se a vida na Paixão da Poesia.


Gerrit Komrij, Contrabando - uma antologia poética,
trad. Fernando Venâncio, Lisboa, Assírio & Alvim, 2005

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

U de "Um homem pode o seu coração"


[...] Dupla afirmação de matéria e tempo, a palavra condensa o que de essencial se passa nas metamorfoses do humano. Pelas palavras se difundem os fluxos que determinam o nosso pensar e agir, por elas o homem se sabe sem definição, transitório. E sabe-se igualmente prematuro. Porque há as palavras antes de si. E a vida é urgência de encontrar essas palavras anteriores, sempre anteriores e sempre futuras num espaço de «devir como simultaneidade». Antes da narrativa há as palavras. Antes da comunidade e antes do mundo há as palavras. Palavras que o homem usa como moeda desvalorizada e que a sua necessidade de domínio, objectividade, lhe faz esquecer sob o imperialismo dos factos. Mas palavras que deflagram no dizer poético, vindas de outros, para outros. E não substituem objectos desaparecidos: são onde fica a possibilidade do homem, a possibilidade de se dirigir ao outro homem. [...]




Silvina Rodrigues Lopes
in Teoria da Des-possessão, Lisboa, Averno, 2013

domingo, 10 de novembro de 2013

P de Poética - XXXII b


[...]

Atravessas
com um sorriso indefinível
as fronteiras:
conheces os espinhos de todas as sebes.

E avanças,
para lá dos hálitos quentes dos homens,
do sono após o amor,
da angústia e da prisão.

[...]


Antonia Pozzi
[Trad. ID - aqui]





Daniela Gomes
in Inês Dias, In Situ, Lisboa, Língua Morta, 2012

P de Poética (XXXII)


"Porque a poesia, verdadeiramente, tem esta tarefa sublime: pegar na dor que espuma e ronca na nossa alma e sossegá-la, transfigurá-la na calma suprema da arte, como fazem os rios ao desaguar na vastidão celeste do mar. A poesia é uma catarse da dor, como a imensidão da morte é uma catarse da vida." 



 Antonia Pozzi
[Via José Carlos Soares]


sábado, 9 de novembro de 2013

R de Rezar na era da técnica (XII)




Federico Fellini, La dolce vita (1960) 

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

T de "Todas as manhãs do mundo"


"Senti que tu querias falar comigo,
na verdade e verdadeiramente; que, à falta de companheiros contemporâneos, tinhas vindo até à beira da minha cama reflectida na água; também estavas reflectido no teu livro como se a tua boca lesse o que escrevias. Senti então amor por ti, mais e menos que paixão, uma espécie de modificação dos sentimentos do amor. Tu ajudavas-me a escrever, eu era uma das tuas necessidades mais amadas."


Maria Gabriela Llansol 
citada in Silvina Rodrigues Lopes, Teoria da Des-Possessão
Lisboa, Averno, 2013.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

T de "Treze maneiras de olhar para um melro" - XIII


XIII.


Fez noite toda a tarde.
Estava a nevar.
E ia nevar.
O melro pousou
Nos ramos do cedro. 




WALLACE STEVENS
[Tradução e fotografia de Inês Dias - Lisboa, 03/010]

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

domingo, 3 de novembro de 2013

P de Perder a cabeça (XI)



Lehnert & Landrock of Cairo, "Karnak - The Amon Temple", circa 1925

sábado, 2 de novembro de 2013

A de Altar (IV)





"[...] O México. Os longos cabelos da morte na cabeça do fígado dos vivos. [...]"
MANUEL DE CASTRO

[Lisboa, 1/11/013 e 20/06/012]