quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

I de "I want to ride my bike" (VIII)




[Sabine Weiss, 1957]

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

S de Solidão (ou C de Comunidade) XXXIV


É Natal, nunca estive tão só.
Nem sequer neva como nos versos
do Pessoa ou nos bosques
da Nova Inglaterra.
Deixo os olhos correr
entre o fulgor dos cravos
e os diospiros ardendo na sombra.
Quem tem assim o verão
dentro de casa
não devia queixar-se de estar só,
não devia.


EUGÉNIO DE ANDRADE


terça-feira, 21 de dezembro de 2021

P de "Primavera, Verão, Outono, Inverno e... Primavera" (V)


Quando o Inverno começa nas mãos
quentes e sujas um cheiro a laranjas
arde no ar como coisa que chora
ao sol calmo da festa.


- SANDRO PENNA
[Trad. Maria Jorge Vilar de Figueiredo]


*


EPISTROPHÉ


O cheiro a laranja nas gotas de frio,
sob o sol do inverno.

O sabor da terra ao levantar-me.


- ABRAHAM GRAGERA

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

M de "My house, I say" (X)

 

A CASA DA NEBLINA


Entraram para a casa da neblina.
Os seus olhos foram-se acostumando
aos contornos indefinidos. Tudo
era impreciso, tudo era difuso.
Também se iam vendo um ao outro
sem contrastes, os rostos não mudavam,
as expressões eram sempre as mesmas,
sempre veladas pela mesma bruma.
Esqueceram-se ambos do mundo lá fora,
e da luz e da dor e da alegria,
da mentira, da emoção, dos beijos,
da amizade e do amor. Negaram
qualquer verdade ou perfil que os ferisse.
E ficou-lhes ambíguo o coração.



Amalia Bautista, Estou Ausente,
trad. e capa de Inês Dias,
Lisboa, Averno, 2013



domingo, 15 de agosto de 2021

M de "My house, I say" (IX)

 



Iris Murdoch by Billy Brandt
[1963]

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

O de "O mundo está escuro: ilumina-o" (II)


É necessário que eu hoje regresse a Rilke, à filtragem da vida exterior. Sinto-me um pouco como um convalescente, um pouco fraca, um pouco triste. Estabeleço laço com um novo canto, o chão próximo da arca e da vela. Penso em Jasmim que me deixou, na sua voz rara e desconhecida. Na Quinta de Jacob está a ter lugar uma reunião sobre perspectivas de futuro, as novas casas, a Quinta, os novos laços e o êxodo. O êxodo é um desejo que eu acrescentei em pensamento e de longe à ordem da reunião, para que se quebrem os meus limites.
Percorro os nostálgicos contos de Rilke – os seus títulos “Frère et Soeur”, “Unis”, “Vieillards”, “Les derniers”, “La fête de famille”. Sinto que o seu espírito/a sua presença me faz companhia e que o meu sofrimento se torna menor.
Um arco singular é quebrado. Pressinto o seu ruído de matéria indeterminada. Continuo a ler e a escrever à luz da vela porque não quero acender a luz, adormeço de olhos abertos com um ritmo fatigado: “nessa noite, assim que a criada acendeu o candeeiro”…
Em Rilke, não consigo ler os contos que têm nomes próprios por títulos: “Le roi Bohusch”, “Ewald Tragy”.
Subitamente penso num bastardo, em alguém que quebrou a monótona árvore genealógica da minha família que era terra a terra. Quem? Onde? Em que momento? Devia ter existido. “Porque ele vive uma dupla vida. Uma no seu futuro e outra no seu passado longínquo.”
Apago a vela, acendo a luz eléctrica.


Maria Gabriela Llansol, UM ARCO SINGULAR – Livro de Horas II,
Lisboa, Assírio & Alvim, 2010, p.25


*


Li por crises. Algumas duraram dois anos. Nesses casos, era obrigada a ler de dia nas grandes bibliotecas universitárias de Paris. É caso para perguntar por que aberração as grandes bibliotecas públicas estão fechadas de noite. Raramente li em praias e jardins. Não se pode ler com duas luzes simultâneas, a do dia e a do livro. Lê-se à luz eléctrica, com o quarto na penumbra, apenas a página iluminada.


Marguerite Duras, O Mundo Exterior
trad. Clarisse Tavares, Lisboa, Livros do Brasil, 1995

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

P de "Paradise Parking"


ESTRANHA FORMA DE VIDA


Sob a bigorna de fogo
que o sol de agosto acende
no muro caiado, derretem-se as pétalas 
de uma sedenta buganvília grená.

Que estranha esta beleza moribunda,
esta desaforada desnudez grandiosa,
esta sílaba breve do milagre.


CARLOS MARZAL
[Trad. ID]





[ID, Santarém, Agosto de 2012]

terça-feira, 27 de julho de 2021

P de Paralelo W (II)


BICHOS


Lembro-me de todos os animais que tive. Tenho muitas saudades de todos. Quase todos tiveram mortes trágicas e eu isso não aceito, não há consolação para isso. Nos meus momentos mais felizes, penso, acredito que a ressurreição vai acontecer e que eu abro a porta de minha casa e todos os animais que tive vêm a subir a escada, estão vivos e vão entrar em casa e todos cabem na casa e a casa é eterna


- ADÍLIA LOPES

sexta-feira, 23 de julho de 2021

C de Começar o dia com um livro novo (LIX)

 



Fátima Maldonado, Sem Rasto (Poesia Reunida),
com capa de Sérgio Eloy,
Lisboa: Averno, 2021

sexta-feira, 16 de julho de 2021

N de "no lugar seguro da próxima Primavera" (M.G.L.) - XV

 



Doris Lessing by Ada Kar, late 1950s
(National Portrait Gallery)

sexta-feira, 9 de julho de 2021

D de Donas gatas


[...]

Encontrar uma coisa é sempre agradável; um momento antes e ela ainda não estava lá. Mas encontrar um gato: é extraordinário! Porque este gato, o leitor estará certamente de acordo, não entra completamente na nossa vida, como aconteceria, por exemplo, com um brinquedo qualquer; mesmo pertencendo-vos agora, permanece um pouco de fora, e isso faz sempre:

                               a vida + um gato

o que dá, asseguro-vos, uma soma enorme.

[...]


- in Mitsou, quarenta desenhos de Balthus com um prefácio de Rainer Maria Rilke, 
Lisboa, Relógio D'Água, 2002





terça-feira, 29 de junho de 2021

O de Oitavos de final


Musa, sinceramente, vai chatear o Camões.
Que podem os poetas, diz-me, contra marketeers,
aguados humoristas e demais fomentadores
de pestilência moral? Que valor pode ter
uma metáfora sem preço, por brilhante
que seja, neste mundo de sementes apagadas
em lameiros de cimento? Tu não vês
o telejornal, Musa? Nunca ouviste falar
da impermeabilização dos solos na cidade
de Deus, do entupimento das artérias cerebrais?
Pensas que estás no século XIX? Mais,
julgas-te capaz de competir com traficantes
de desejos, decibéis e abraços? És capaz
de fazer rir um desempregado, de excitar
um espírito impotente? Consegues marcar
golos geniais como o Ricardo Quaresma,
proteger do frio as andorinhas, ir buscar
as crianças à escola? Se achas que sim,
faz-te à onda do mercado, Musa, e boa sorte.
Mas não contes comigo para te levar à praia.
Sabes perfeitamente que detesto areia, sol
na testa e mariolas de calção. Vá, não me maces.
Pela parte que me toca, ficamos por aqui.


José Miguel Silva, Últimos Poemas,
Lisboa, Averno, 2017

domingo, 27 de junho de 2021

quinta-feira, 24 de junho de 2021

E de Encontro (II)


5.


Nunca separei um sorriso do amor.

Circula essa jornada confusa,
um afã não dito,
um amargo que muda


em ternura.

                    Tranquila vibração,
recôndita fugacidade, solta
o gemido que vai da língua à garganta,
semente de uma ave.

Enleia num alento o outro enleio.

O silêncio não precisa de provocar
o que não ouve, lá fora, na madressilva.

A glicínia a magnólia o cacilheiro
cada margem.

Um sorriso.

Joaquim Manuel Magalhães, "Homossexualidade",
in Telhados de Vidro n.º 4, Lisboa, Averno, Maio de 2005




[ID, Maio 016]




domingo, 30 de maio de 2021

P de (Um Ano de) Pássaros (II)

Disseram-me outro dia que o nível de civilização de uma cidade (até de um povo?) também se pode medir pelo grau de confiança dos pardais em relação às pessoas. A julgar pelos pardais da Gulbenkian, Lisboa já pode competir com Copenhaga.



[ID | 11/009]

terça-feira, 4 de maio de 2021

P de Poética (XXXIX)


Eu tenho a intuição, Aramis, de que os monstros
são as tentativas mais puras do Universo. 
"Olha-os e não os mates."



Maria Gabriela LLansol, O raio sobre o lápis,
com desenhos de Julião Sarmento (1948-2021),
Lisboa: Europália, 1991

domingo, 25 de abril de 2021

sexta-feira, 23 de abril de 2021

C de Começar o dia com um livro novo (LVIII)

 

TURECK, 1956


Lentidão. Ou quase,
para quem sabe o veludo
de sofrer. Lembrar o amor
é agora apenas isso:
uma folha de amoreira
que te vi pousar no ombro.
Eu falava, escrevia até,
sobre Gould e Ross,
como se houvesse um sítio
permeável à paixão.

Procura-se
ainda
jovem canadiano.
Costumava ler poemas
em frente ao Museu Vieira da Silva. 
Por volta das seis da tarde.

Hoje, que chove tanto,
denuncio as perfídias do Outono,
esqueço em cada verso
os lentos, os velozes dedos:
Allemande, escurecendo.


Manuel de Freitas, Büchlein Für Johann Sebastian Bach, 2.ª ed. rev., 
com capa e arranjo gráfico de Luís Henriques,
Lisboa: Alambique, 2021




[ID, 11/013]

sexta-feira, 16 de abril de 2021

T de Tratado de Pedagogia (LXXI)

 



Remedios Varo, L'école buissonnière

terça-feira, 13 de abril de 2021

A de Anomalia Poética (VIII)

 




[ID, Santarém-Lisboa, 2014-2021]

sexta-feira, 2 de abril de 2021

P de Páscoa Feliz (VIII)

 



Paul Gauguin, Le Christ jaune (1889)



terça-feira, 30 de março de 2021

P de Pandemia




Wim Wenders, Paris Texas, 1984

domingo, 28 de março de 2021

C de Coração arquivista (IV)


[...] Anoto este facto, entre outros, no meu caderno, para futuras referências. Quando for grande terei sempre comigo um espesso caderno de notas com numerosas páginas metodicamente dispostas por ordem alfabética. Aí escreverei as minhas notas. Na letra B, haverá por exemplo "Borboletas brancas reduzidas a pó". Se no meu romance tiver que descrever um raio de sol num parapeito da janela, irei ver a letra B e lá encontrarei as palavras "Borboletas brancas reduzidas a pó". Há-de ser-me útil. [...]


Virginia Woolf, As Ondas,
trad. Francisco Vale, Lisboa: Relógio D'Água, 1988

quinta-feira, 25 de março de 2021

M de Mesa de Amigos (II)



Era uma vez uma tarde cheia de sol. Não havia um gesto a mais. Nem palavras. Estava alguém num café. Ao sol. Eram pequeninas coisas a ligarem-se umas às outras: desde um copo de água aos teus ombros. […] E o sol a bater em cheio na mesa. E nas mãos. 

[…] E pronto. É assim que se faz a História. Sem palavras a mais. 

[...]


Eduardo Guerra Carneiro, É assim que se faz a história,
Lisboa: Assírio & Alvim, 1973

domingo, 28 de fevereiro de 2021

I de Intimidade - b


Termina assim um poema de António Barahona:

"Se vindes procurar-me aqui, 
vinde, portanto, lentamente e com doçura 
e com receio de riscar 
a porcelana da minha solidão."

Bocca de Pedra (Nono Tômo da Suma Poética), 
Lisboa, Averno, 2021


*


Termina assim um poema de W. B. Yeats:

"I have spread my dreams under your feet; 
Tread softly because you tread on my dreams."


*


Termina assim um poema de Jean Genet:

"Mais pour me parcourir enlève tes souliers."



[ID, 'Pelos caminhos da manhã', 03/014]

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

N de "no lugar seguro da próxima Primavera" (M.G.L.) - XIII

 



Louise Glück, Averno,
trad. de Inês Dias,
Lisboa, Relógio D'Água, 2020

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

S de "Sempre disse tais coisas esperançad@ na vulcanologia" - XXX b


"Com a primeira luz, um pássaro negro afasta-se a voar - é um poema."

Lawrence Ferlinghetti, A Poesia como Arte Insurgente,
trad. de Inês Dias, Lisboa, Relógio D'Água, 2016




[ID, São Miguel / Agosto 012]

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

T de (Uma) teoria de pássaros (XXXIV)




Lawrence Ferlinghetti, A poesia como arte insurgente,
trad. de Inês Dias,
Lisboa, Relógio D'Água, 2016

sábado, 20 de fevereiro de 2021

T de Tempo Sem Tempo (VI)


Na verdade, nada do que é importante e acontece e me faz vivo, tem a ver com o tempo. O encontro com um ser amado, uma carícia na pele, a ajuda no momento crítico, a voz solta de uma criança, o frio gume da beleza - nada disso tem horas nem minutos. Tudo se passa como se não houvesse tempo. Que importa se a beleza é minha durante um segundo ou por cem anos? A felicidade não se situa só à margem do tempo, como nega toda a relação deste com a vida.

Stig Dagerman, A  Nossa Necessidade de Consolo é Impossível de Satisfazer,
Lisboa: Fenda,  1989


sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

P de Poética (XL)









                                                                                                                                                                       Rui Azevedo Ribeiro, Bombo
Porto: Edições 50Kg, 2013, p.6

A de A propósito de melros *


Um melro desgrenhado
esgravata a terra do vaso

Escrevo
esgravato
com o bico da caneta
o caderno

Escrevo 
escaravelho


Adília Lopes
in Estar em casa, Lisboa: Assírio & Alvim, 2018


*


VI



E todavia,
as risadas do melro na gaiola
fazem-me rasgões por dentro
como se em vez de riso fossem pranto.

Porque eu sou como ele:
alguém me reduziu o tamanho do quintal
até o quintal ficar isto que se vê
- e eu a defendê-lo a golpes de riso. 

Como o melro, tal e qual. 


A. M. Pires Cabral
in Telhados de Vidro n.º 11, 
Lisboa, Averno, Novembro de 2008


*


A ÚLTIMA NOITE DA TERRA


O melro de todos os anos voltou a visitar a minha casa
mas eu permaneço aqui.
A sua música não muda, já o escrevi.
No entanto o meu trabalho é constatar o óbvio
e isso é o que o melro me vem recordar.
O tempo passa, as pessoas envelhecem, morrem
pela sua própria mão ou com ajuda.
As palavras vão descendo pelo escoadouro
do que alguém chamou a intra-história.
Tudo flui e perde-se, os rios no mar,
o mar na imensidão inabarcável do cosmos,
o cosmos no nada de onde não deveria ter saído.
Entretanto vamos dando às teclas.
Um tamborilar contra séculos de morte programada
e um futuro de certeira incerteza.
Um batalhão de patéticos amanuenses do esquecimento
exigindo duas camisas para o caminho até ao patíbulo.
O frio não é porém o problema, antes o medo.
E é o melro, na sua ignorância, quem conhece a verdade.
Cumpre sem a mínima estridência
o ritual que a biologia lhe impôs.
E de súbito morrerá. Sem epitáfios, como este,
que hão-de desfazer-se com uma careta indiferente
entre as chamas da última noite da Terra,
quando já ninguém reconhecerá qualquer significado,
se é que algo alguma vez teve significado.


Roger Wolfe
in Criatura n.º5, trad. Luís Filipe Parrado,
Faculdade de Direito de Lisboa, 2010


*


[...]
Por vezes fixo uma data, talvez até ao fim da minha vida. E quando chegar um dia antes desse dia, posso lembrar-me sempre de um facto que se lhe prende. Não importa que seja um aniversário. Pode não passar de um gesto, de um rosto que para sempre ficou perdido na distância não só do tempo como de uma rua, de uma sala de museu, de uma loja. Durou segundos, mas traz o traço, a sombra, a luminosidade capaz de se prender pelo que houver de longo na minha vida. Irrompe no exacto dia do aniversário da sua aparição, ou andará próximo desse instante. Nem sempre é um rosto, um corpo, ou um melro morto à beira de um passeio. Um objecto pode ser o senhor desse domínio festivo. Mesmo a morte de um melro ou de alguém amado transporta consigo um sentido de festa, de coisa que se comemora no mais secreto.
[...]


João Miguel Fernandes Jorge
in O Próximo Outono, Lisboa, Relógio D'Água, 2012


*


TREZE MANEIRAS DE OLHAR PARA UM MELRO


I

Entre vinte montanhas cobertas de neve,
A única coisa que se movia
Era o olho de um melro.


II

Eu tinha três ideias em mente,
Tal como uma árvore
Em que estão três melros.


III

O melro rodopiava nos ventos de Outono.
Era uma ínfima parte da pantomina.


IV

Um homem e uma mulher
São um.
Um homem e uma mulher e um melro
São um.


V

Não sei se prefiro
A beleza das entoações
Ou a beleza dos subentendidos,
O melro a assobiar
Ou o instante depois.


VI

Os pingentes de gelo cobriam a longa janela
De vidro bárbaro.
A sombra do melro
Atravessava-a, de um lado para o outro.
O ambiente
Desenhava na sombra
Uma causa indecifrável.


VII

Ó homens magros de Haddam,
Porque é que imaginam pássaros de ouro?
Não vêem como o melro
Anda entre os pés
Das vossas mulheres?


VIII

Sei de tons nobres
E de ritmos lúcidos, irresistíveis;
Mas sei, também,
Que o melro faz parte
Daquilo que sei.


IX

Quando o melro desapareceu de vista
Marcou o limite
De um de muitos círculos.


X

Ao verem melros
A esvoaçar na luz verde,
Até as alcoviteiras da eufonia
Gritariam subitamente.


XI

Ele atravessava o Connecticut
Numa carruagem de vidro.
Um dia, o medo apoderou-se dele,
Ao confundir
A sombra dos seus cavalos
Com melros.


XII

O rio move-se.
O melro deve estar a voar.


XIII

Fez noite toda a tarde.
Estava a nevar.
E ia nevar.
O melro pousou
Nos ramos do cedro.


Wallace Stevens
[Trad. Inês Dias]


*


CANTO DA CHÁVENA DE CHÁ



Poisamos as mãos junto da chávena
sem saber que a porcelana e o osso
são formas próximas da mesma substância.
A minha mão e a chávena nacarada
– se eu temperar o lirismo com a ironia –
são, ainda, familiares dos pterossáurios.
A tranquila tarde enche as vidraças.
A água escorre da bica com ruído,
os melros espiam-me na latada seca.
É assim que muitas vezes o chá evoca:
a minha mão de pedra, tarde serena,
olhar dos melros, som leve da bica.
A Natureza copia esta pintura
do fim da tarde que para mim pintei,
retribui-me os poemas que eu lhe fiz
de novo dando-me os meus versos ao vivo.
Como se eu merecesse esta paisagem
a Natureza dá-me o que lhe dei.
No entanto algures, num poema, ouvi
rodarem as roldanas do cenário,
em que as palavras representavam
a cena da pintura da paisagem
num telão constantemente vário.
Só o chá me traz a minha tarde,
com a chávena e a minha mão que são
o mesmo pedaço de calcário.
Hoje a bica refresca a água do tanque,
os melros descem da latada para o chão,
e as vidraças devagar escurecem.
As palavras movem-se e repõem
no seu imóvel eixo de rotação
o espaço onde esta mesa de verga
gira nas grandes nebulosas.


Fiama Hasse Pais Brandão
in Cantos do Canto, Lisboa, Relógio D'Água, 1995


*


LEX VISIGOTHORUM



para o Manuel de Freitas


Mestre,


Este escrivão será breve nas palavras e demorado sob as estrelas, pois a vida extingue-se com um sôpro e o pavio da candeia arde e consome-se com a falta dele. A oliveira cresceu como um Poeta, benzida pelas estações, no render da Guarda Real: os Meses, o Sol e a Lua. As raízes são profundas e agarram-se à terra como os condenados. No nosso ofício, entre verbos e versos, transcrevi uma lei visigótica: coima de cinco soldos para quem arrancar oliveira alheia. Bárbaros somos nós, em Portucale: árvore alheia, coração próprio. Meu velho amigo, fora das muralhas está a belíssima civilização do Mundo: o gamo dorme à sombra da rama e o melro assobia com mel no bico. O gato faz o que quer e é feliz com tão pouco. Não há ponta de treva que cresça nesta saúde. Aqui, rente ao osso da matéria, a acidez é baixa e a lira canta alto. Termino, amadoramente, com um verso de outro tempo: é o músculo do peito que dá corda ao destino. Mestre, esta terra tem coroa: a família, frutos e um fio de ouro no lagar.


Ricardo Álvaro
in AAVV, De fio a pavio, Lisboa: Tea For One, 2012


*


Foi possível    sabes?
O dia foi breve menos do que os outros      possível
tão breve     a passagem dum melro     todo amarelo no canto
foi só escrever o poema
e logo a noite      tão breve


Abel Neves
in Eis o amor      a fome e a morte, Lisboa, Cotovia, 1998


*


Quando no quarto branco da Charité
Acordei de manhã
E ouvi cantar o melro, entendi
Muitas coisas. Muito havia
Que a morte não temia por saber
Que nada mais me faltaria se
Eu próprio me faltava. Nesse instante
Cheguei a alegrar-me até
Com o canto dos melros após a minha morte.


Bertolt Brecht
in Poemas, sel. e trad. de Arnaldo Saraiva, 
Lisboa: Presença, s/d




[* Uma micro-antologia, começada a 4 de Outubro de 2016, para o Ricardo Álvaro.]

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

C de Começar o dia com um livro novo (XXXI)





VERSOS DO DESCONSOLO


para Stig Dagerman


fiquei com pouco tempo
para dar à claridade
e as abelhas já não vêm
pôr mel dentro das rosas.

às vezes, a minha sombra
é um pedaço de risco,
qualquer coisa desavinda
a que o Sol quer dar sustento.

quem disse que a memória
é sempre muito antiga?

quem falou de uma aranha
para tecer a eternidade?


Emanuel Jorge Botelho, Fecho a cortina, e espero,
com capa de Luis Manuel Gaspar e um desenho de Urbano, 
Lisboa: Averno, 11 de Agosto de 2014





[Lou, 01/015]

domingo, 24 de janeiro de 2021

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

M de 'Memory of a bird' (III)


ROUXINOL


Fiz a minha casa perto do bosque
Só para te ouvir cantar
E foi doce e foi bom
E o amor estava ainda a despontar

Despeço‑me de ti, meu rouxinol
Foi há muito que te encontrei
Falha agora o teu belo canto
E a floresta fecha‑se à tua volta

O sol põe‑se a coberto de um véu
Era agora que me chamavas
Por isso descansa em paz, meu rouxinol
Sob o teu ramo de azevinho

Despeço‑me de ti, meu rouxinol
Vivia para estar ao teu lado
Continuas a cantar noutro sítio
Mas deixei de poder ouvir ‑te


Leonard Cohen, A Chama,
trad. de Inês Dias, Lisboa, Relógio D'Água, 2019




[ID, 'Pelos caminhos da manhã', 12/01/020]

domingo, 10 de janeiro de 2021

P de "Pelos caminhos da manhã" (VIII)

 

"[...] Era Inverno, mas ele parecia conhecer o caminho mesmo com o nevoeiro: conhecia as plantas, e muitas vezes os nomes das plantas eram as plantas [...]"

Ana Teresa Pereira, Os perseguidores
[Relógio D'Água, 2020]





[Fotografia: ID | 30/12/012]

S de "Semantics won't do" (XXX)


B de Biorritmo