Morreu Dom Fuas, gato meu sete anos,
pomposo, realengo, solene, quase inacessível,
na sua elegância desdenhosa de angorá gigante,
cendrado e branco, de opulento pêlo,
e cauda como pluma de elmo legendário.
Contudo, às suas horas, e quando acontecia
que parava em casa mais que por comer
ou visitar-nos condescendentemente como
a duquesa de Guermantes recebendo Swann,
tinha instantes de ternura toda abraços,
que logo interrompia retornando
aos seus paços de império, ao seu olhar ducal.
Nunca reconheceu nenhuma outra existência
de gato que não ele nesta casa. Os mais
todos se retiravam para que ele passasse
ou para que ele comesse, eles ficando
ao longe contemplando a majestade
que jamais miou para pedir que fosse.
Andava adoentado, encrenca sobre encrenca,
e via-se no corpo e no opulento pêlo,
como no ar da cabeça quanta humilhação
o sofrimento impunha a tanto orgulho imenso.
Por fim, foi internado americanamente,
no hospital do veterinário. E lá,
por notícia telefónica, sozinho, solitário,
como qualquer humano aqui, sabemos que morreu.
A única diferença, e é melhor assim,
em tão terror ambiente de ser-se o animal que morre,
foi não vê-lo mais. Porque ou nós morremos,
como dantes se morria em público,
a família toda, ou toda a corte à volta, ou
é melhor que se não veja no rosto de qualquer
– mesmo ou sobretudo no de um gato que era tão orgulhoso em vida –
não só a marca
desse morrer sozinho de que se morre sempre
mesmo que o mundo inteiro faça companhia,
mas de outra solidão tecnocrata, higiénica
que nos suprime transformados em
amável voz profissional de uma secretária solícita.
Dom Fuas, tu morreste. Não direi
que a terra te seja leve, porque é mais que certo
não teres sequer ter tido o privilégio
de dormir para sempre na terra que escavavas
com arte cuidadosa para nela pôres
as fezes de existir que tão bem tapavas,
como gato educado e nobre natural.
Nestes anos de tanta morte à minha volta,
também a tua conta. Nenhum mais
terá teu nome como outros tantos gatos
antes de ti foram já Dom Fuas.
Jorge de Sena, 40 Anos de Servidão,
Lisboa, Edições 70, 1989