domingo, 4 de maio de 2025

P de Poética (LII)


EU TINHA GRANDES NAUS


Os amantes esquecem. A primavera volta.
A terra treme. E passam as aves em bandos
vindas de Heligoland por detrás da serra.
O teu olhar poisava em mim: estava certo
que fosse dessa maneira. Agora esqueceste
- também está certo, a gente crê-o como tal. 
Porque passar, voltar, tremer, poisar, 
esquecer o que foi agudo e fundo
são coisas, digo bem, de todos os dias.

Os poetas lamentam-se de mais.
Gastam-se por vezes num choro muito fino,
quase impraticável. Querem ser ouvidos,
e vá de escreverem tal e tal desgraça.
Mas estão desempregados? morreu-lhes a mãe?
a chuva entra pelas solas com buracos?
Ou vão mover o mundo, as azenhas do mundo?

Se o teu olhar já não poisa em mim,
paciência, não morrerei por isso.
Iuri Gagárine lá foi pelo céu acima.
Aliás a vida tem recursos admiráveis.
"Há um futuro à espera", porque não também
uma outra mulher que no futuro me espera?
Os amantes esquecem: é que alguma coisa
os leva (recônditamente) a esquecer.
A primavera volta, as aves passam em bandos;
e a mesma terra, quando treme, treme
cheia de naturalidade. Tudo isto
fará a delícia e o horror dos nossos filhos.

Os poetas, que se lamentam de mais,
acenam com as suas dores particulares
a quem passa, que passa por outras razões.
Querem dedos suaves na testa, um calor
de lábios nas pálpebras molhadas.
São poetas, isto é, seres em aflição.
Campainhas tocando ao mais pequeno vento.
Querem ser ouvidos, consolados, tapados do frio.
Temem o desprezo, a desolação ambiente,
os cães que ladram muito alto muitas vezes.

Mas o Maio volta. É bom saber
que num dia qualquer de um destes anos
vamos todos rir e dar as mãos,
troçar do domador se ainda houver.
Os amantes amam: são coisas
da primavera.
Os poetas consertam-se: são coisas
da sua mecânica misteriosa.

Portanto não morri. Eu tinha grandes naus
aparelhadas na ribeira do coração.
Portanto não morri. Caíram árvores,
camponeses gritavam enquanto a chuva
mordia raivosamente as coisas do mundo.
"Paciência", dizia eu, "não morrerei por isso".
E esperava o sândalo e a canela.


Fernando Assis Pacheco, Cuidar dos Vivos,
Coimbra, Cancioneiro Vértice, 1963

quinta-feira, 1 de maio de 2025

P de Poética (LI)


"O poema é solitário. É solitário e vai a caminho."

Paul Celan



[Moinho Grande, Agosto 013]

S de Sete rosas mais tarde



Quem arranca de noite o coração do peito deseja a rosa.
Pertencem-lhe a sua folha e o seu espinho.
A esse põe ela a luz no prato,
com o seu sopro enche-lhe os copos,
só para ele sussurram as sombras do amor.

Quem arranca de noite o coração do peito e o arremessa ao alto:
não falha o alvo,
apedreja a pedra,
a esse bate-lhe o sangue fora do relógio,
o tempo faz-lhe soar na mão a sua hora:
pode brincar com bolas mais bonitas
e falar de ti e de mim.
Paul Celan

sábado, 19 de abril de 2025

P de Páscoa Feliz (II)


"Ajoelhada no relvado húmido e perfumado do parque da aldeia, Clara Morrow escondeu cuidadosamente o ovo de Páscoa e pensou em ressuscitar os mortos, o que tencionava fazer logo após o jantar. [...]"


Louise Penny, O mais cruel dos meses,
trad. Inês Dias, Lisboa: Relógio D'Água, 2016






"Várias colunas dóricas, entrelaçadas por uma trepadeira de madressilva, davam um aspecto de velha mansão sulista à fachada da casa de Fondero. A impressão era dissipada pelo enorme carro funerário preto estacionado ao lado. Atrás do carro funerário, havia um pequeno carro desportivo vermelho. A incongruência entre os dois veículos divertiu Pinata. A morte e a ressurreição, pensou ele. Se calhar é assim que os americanos de hoje imaginam a ressurreição, como um carro desportivo vermelho, levando-os por uma estrada de espuma sintética em direcção a um nirvana de nylon."


Margaret Millar, Um estranho no meu túmulo,
trad. Inês Dias, Lisboa: Averno, 2011

sexta-feira, 18 de abril de 2025

C de "(O) começo de um livro..." - ou de uma editora (III)


Regressar a casa sozinho e noite dentro
quando o silêncio das árvores da rua se acentua
e os poemas que nunca hás-de fazer te atingem
com o fragor de telhas caídas de um telhado
mesmo em cima da tua cabeça - tanta fragilidade
E por fim entrar em casa, ordeiramente
A essa hora todo e qualquer remorso
é coisa de somenos, importante sim
para dormir, para brincar, só a morte
Ursinho de peluche no travesseiro
da cama - a tua morte


Rui Caeiro, Sobre a nossa morte bem muito obrigado,
com capa de Luís Henriques e arranjo gráfico de Inês Mateus
Lisboa: Alambique, 18 de Abril de 2014
[1.ª ed.: &etc, 1989]



sábado, 15 de março de 2025

P de PELOS CAMINHOS DA MANHÃ




para a Inês

Os do teu tempo, coitados,
não vão achar bem o título.
Pudessem ao menos perceber
que não existe tempo
ou que "real" (por exemplo)
é a navalha firme
que se fechará em breve,
anulando os gestos todos.

Quero, na verdade, que se
lixem. Acordei com esse verso,
abri a porta ao nevoeiro (é uma
observação meteorológica)
e seguimos, em silêncio,
até ao extremo da lezíria.

Pássaros que nunca vira
insistiram em acompanhar-nos,
pela estrada de areia breve
onde tantas vezes caí de bicicleta.
Quase gostei de estar vivo -
vivo, ao teu lado, naquela manhã de Março.

Pássaros, uma papoila isolada,
a sombra do mais castanho dos cavalos
diziam-me que a morte
se calava só para que te pudesse ver.
Enquanto as nuvens, já sem cor, passavam.


Manuel de Freitas, Terra Sem Coroa (Teatro de Vila Real, 2007)

E de "É assim que se faz a História. Sem palavras a mais." (XXXV)

AS PAREDES DO SENTIDO TÊM DE FACTO BOLOR



Está tudo bem. O céu do Ocidente
decai, os índices da Bolsa mantêm-se
estáveis, catastroficamente presentes
na vida de cada um de nós
- aqueles que adiam o amor e
que sempre gostaram tanto 
de mentiras certas e portáteis.

O céu do Ocidente, em Lisboa, é
um fundo negro de asfixia e paixão
onde apenas estrelas moribundas 
nos lembram que existe um olhar míope
- enquanto o milénio finda
com as suas máquinas de triturar canções,
os tão pequenos ardis que promovem
a derrota. O sangue parado, no chão.

E os índices da Bolsa como raparigas 
novas nos infatigáveis jornais
por ler, ao lado dos cigarros, ajudam-nos
a esquecer os cancros que uma moral suspeita
soletra. Será isto a vida? Também.
O telemóvel de Prometeu dá-nos
indicações precisas sobre a ignorância,
observa o fuso horário do desespero.

Modos de pavor, em suma,
que em qualquer tempo seriam
esta mão ocidental e fria
que escreve para ninguém ouvir
o nada que tem (terá?)
para dizer na noite corrompida.
As coisas são assim, paciência, 
e aglutinam-se, em dígitos complicados,
o novo Peugeot pensante,
terapias por cumprir de Burton:

a melancolia nos ossos, as fezes da amada
sob a cabeça amante,
enquanto um airbag trocista
nos obriga a uma vida 
que se gastou tão gasta
e que rescende nula
nos mais variados aspectos.

Pois é.


Manuel de Freitas
in A Última Porta, selecção e posfácio de José Miguel Silva,
Lisboa:  Assírio & Alvim,  2010

N de "Na casa de Julho e Agosto" (IV)


NESTE SILÊNCIO

         
Neste silêncio oculto onde as tuas mãos se deslumbram a cada movimento, subsistimos com o peso do crepúsculo e a miséria da guerra.

Inútil a nossa vida, inútil a vida dos outros, quando o amor é um pássaro dentro duma gaiola no deserto. Inútil toda a simbologia funcional das imagens, porque ao homem é dado o sonho com o sentido das coisas.

De bruços sobre a areia, descanso as pálpebras no mar. A minha ociosidade é um peixe de prata adormecido nas ondas, um barco sem dono ancorado na doca. E hei-de morrer assim contigo, companheira ou ilusão do meu cansaço, porque a verdade que trouxemos é um trapézio vasio num circo em ruínas, uma flor no trapézio e muitos gatos a assistir até ao dia nunca mais do horizonte livre.
 
       
António Barahona da Fonseca, Poemas e Pedras,
Lisboa: edição do autor, 1962






[ID, Nazaré / Agosto 013]

terça-feira, 31 de dezembro de 2024

M de Merry Little Christmas (II)

 

"[...] 

No Natal, uma amiga mandou-me um cartão de boas festas da Unicef com um Anjo da Anunciação de Fra Angelico. Tenho-o em exposição no meu quarto e, quando quero rezar, olho para ele. Mas não sou contemporânea de Fra Angelico. Não posso tomar café e tagarelar com ele nos cafés como posso fazer com a amiga que me enviou o anjo dele pelo Correio. Por isso o Anjo da Anunciação de Fra Angelico, que é tão bonito, pode também ser doloroso. Fra Angelico já morreu. E não é a beleza do anjo de Fra Angelico que me garante que Fra Angelico ressuscitará.

Um poema de Rimbaud está cheio de violência. Há muita beleza na expressão dessa violência. E isto é terrível. Preferia que Rimbaud não estivesse ferido a ponto de escrever daquela maneira? Preferia. Mas não posso dizer isto assim.

A arte é feita para construir a paz. Não é um esgrimir no vazio. Não pode ser. Olho para o Anjo da Anunciação de Fra Angelico. Parece-me belíssimo. É vermelho e dourado. É verde e azul. Mas, ao escrever assim, parece-me que estou a evocar o poema de Rimbaud intitulado «Voyelles». A arte é um modo de lidar com a ausência. E por isso é tão preciosa e tão perigosa. Nunca é a alegria da presença."


- ADÍLIA LOPES (1960-2024)


quarta-feira, 6 de novembro de 2024

A de Amor


CONTA-MO OUTRA VEZ
                           
                               
Conta-mo outra vez: é tão bonito
que não me canso nunca de escutá-lo.
Repete-me, uma vez mais, que o par
do conto foi feliz até à morte,
que ela não lhe foi infiel, que ele nem sequer
pensou em enganá-la. E não te esqueças
de que, apesar do tempo e dos problemas,
continuavam cada noite a beijar-se.
Conta-mo mil vezes, se faz favor:
é a história mais bela que conheço. 

        
Amalia Bautista, Coração Desabitado,
com sel. e trad. de Inês Dias, desenhos de Débora Figueiredo,
e arranjo gráfico de Pedro Santos, Lisboa, Averno, 2018





domingo, 29 de setembro de 2024

P de "(As) Praias Obscuras"




«[...] "Quero a alegria de um barco voltando" é dos melhores versos que conheço. 
Corrijam-me, se estiver errado.»

Manuel de Freitas, Ubi Sunt
(Averno, 2014)

sábado, 31 de agosto de 2024

N de "Nous deux encore" (XI)

 



Giorgio de Chirico, "A Nostalgia do Infinito" (1911)

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

quinta-feira, 1 de agosto de 2024

P de Pausa

 



John MacWhirter, "June in the Austrian Tyrol" (1892)

quarta-feira, 10 de julho de 2024

T de Tratado de Pedagogia (XVII)

Go and catch a falling star,
Get with child a mandrake root,
Tell me where all past years are,
Or who cleft the devil's foot,
Teach me to hear mermaids singing,
Or to keep off envy's stinging,
And find
What wind
Serves to advance an honest mind.

If thou be'st born to strange sights,
Things invisible to see,
Ride ten thousand days and nights,
Till age snow white hairs on thee,
Thou, when thou return'st, wilt tell me,
All strange wonders that befell thee,
And swear,
No where
Lives a woman true and fair.

If thou find'st one, let me know,
Such a pilgrimage were sweet;
Yet do not, I would not go,
Though at next door we might meet,
Though she were true, when you met her,
And last, till you write your letter,
Yet she
Will be
False, ere I come, to two, or three.


John Donne

sábado, 6 de julho de 2024

P de Poética (XXXVI)


BICICLETA
 


Lá vai a bicicleta do poeta em direcção
ao símbolo, por um dia de verão
exemplar. De pulmões às costas e bico
no ar, o poeta pernalta dá à pata
nos pedais. Uma grande memória, os sinais
dos dias sobrenaturais e a história
secreta da bicicleta. O símbolo é simples.
Os êmbolos do coração ao ritmo dos pedais –
lá vai o poeta em direcção aos seus
sinais. Dá à pata
como os outros animais.


O sol é branco, as flores legítimas, o amor
confuso. A vida é para sempre tenebrosa.
Entre as rimas e o suor, aparece e des
aparece uma rosa. No dia de verão,
violenta, a fantasia esquece. Entre
o nascimento e a morte, o movimento da rosa floresce
sabiamente. E a bicicleta ultrapassa
o milagre. O poeta aperta o volante e derrapa
no instante da graça.


De pulmões às costas, a vida é para sempre
tenebrosa. A pata do poeta
mal ousa agora pedalar. No meio do ar
distrai-se a flor perdida. A vida é curta.
Puta de vida subdesenvolvida.
O bico do poeta corre os pontos cardeais.
O sol é branco, o campo plano, a morte
certa. Não há sombra de sinais.
E o poeta dá à pata como os outros animais.


Se a noite cai agora sobre a rosa passada,
e o dia de verão se recolhe
ao seu nada, e a única direcção é a própria noite
achada? De pulmões às costas, a vida
é tenebrosa. Morte é transfiguração,
pela imagem de uma rosa. E o poeta pernalta
de rosa interior dá à pata nos pedais
da confusão do amor.
Pela noite secreta dos caminhos iguais,
o poeta dá à pata como os outros animais.


Se o sul é para trás e o norte é para o lado,
é para sempre a morte.
Agarrado ao volante e pulmões às costas
como um pneu furado,
o poeta pedala o coração transfigurado.
Na memória mais antiga a direcção da morte
é a mesma do amor. E o poeta,
afinal mais mortal do que os outros animais,
dá à pata nos pedais para um verão interior.


 
Herberto Helder
in Antologia de Poesia Portuguesa 1960-1990, org. e introd. de Luís Miguel Nava,
Lisboa / Leuven: Caminho / Leuvense Schrijversaktie, 1991
 

domingo, 23 de junho de 2024

P de Paralelo W (II)



"[...]

Muitas coisas aconteceram no Paralelo W: exposições, festas, as leituras em scat do Nuno Moura, em allegro assai do Diogo Dória ou con tenerezza do João Paulo Esteves da Silva. Ocasionalmente, vendíamos livros. Mais importante do que a literatura e quem lá anda (às vezes pelos piores motivos) foi termos recolhido duas gatas - a Ginja e a Mia - que nos deram a magia e o consolo de que poucos humanos são capazes. O Joaquim ainda conheceu uma delas e teve uma frase indelével, ao saber do fecho do Paralelo W: 'Nunca mais nos vamos poder encontrar por acaso'. Na internet, para onde vamos agora de malas aviadas e coração devoluto, uma marradinha não é bem uma marradinha - e os corações são ali apenas sinais gráfico mais ou menos insinceros. É tão difícil, Zé, abrir uma garrafa de vinho branco online

[...]"





- Manuel de Freitas (texto) e Luís Henriques (ilustração),
Cão Celeste n.º 13, Lisboa, 2019

quinta-feira, 20 de junho de 2024

S de Solstício










[Fotografias: ID, 'Regional', 016]

quinta-feira, 13 de junho de 2024

S de Santo Antoninho dos Esquecidos (II)


13 DE JUNHO DE 2011


para a Inês Dias


A festa foi ontem. Mas não tivemos festa,
pela primeira vez em muitos anos.
Almoçámos tarde, na Rua da Regueira,
e o amor parecia diluir-se entre vielas
demasiado limpas e sombras do que já fomos.

Nas paredes devolutas, encontraste pássaros,
grinaldas frias, versos sem dono
nem sentido. Perto, ou muito longe,
três velas teimavam em iluminar-te os passos.
O cravo, azul, veio ao nosso desencontro.
Mas era de papel, embora rubro;
não nos podia salvar de sermos nós.

A festa, a única que me interessa, é o teu nome.


- MANUEL DE FREITAS
in Sunny Bar, org. de Rui Pires Cabral,
posfácio de Silvina Rodrigues Lopes, capa de Luís Henriques
e arranjo gráfico de Pedro Santos, Lisboa, Alambique, 2015





[ID, 12/06/017]

A de Altar (VI)



[Santo António, 2019]

quinta-feira, 30 de maio de 2024

P de (Po)ética (LXIV)

 



MARGUERITE DURAS
[Trad. Tereza Coelho]

terça-feira, 14 de maio de 2024

I de Intimidade - III b


"Digamos que há uma entrega total ao momento e ao ofício - tal como às pessoas a quem se ama ou com quem se está em intimidade. Repara que, mesmo quando se está só a conversar com alguém, há uma entrega total. Quando se está num acto íntimo tem de se ter uma atenção e entrega totais, tal como num acto artístico (o que quer que esta expressão queira dizer...). É por isso que não quero ninguém por perto, no atelier. Chego mesmo a sentir pudor."


Rui Chafes, Sob a Pele... conversas com Sara Antónia Matos,
Lisboa: Documenta, 2016


*


"Ver de perto a fé de outra pessoa não é mais fácil do que vê-la a cortar um dedo."


Alice Munro, Vidas de raparigas e mulheres,
trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa: Relógio D'Água, 2014

sexta-feira, 26 de abril de 2024

P de (Po)ética (LXIII)

 


REMEDIOS VARO 
[1958 | 1962]



quinta-feira, 25 de abril de 2024

L de Liberdade

 



HANS MEMLING
[pormenor]

terça-feira, 5 de março de 2024

F de Flor Suficiente (XI)



[ID, Lx, 10/011]



"[...]
olha     traz-me um ramo de qualquer coisa
qualquer coisa que venha amaciar o seco das palavras
deitadas a este relento entre ninhos de raposa
e um sonho de groselhas 
é que deixam secura e mais nada     não deixam mais nada
os sabugueiros ao menos deitam flores e bagas
tudo pérolas     traz-me um ramo de azul tuaregue
e nem é preciso que vás ao deserto
entra por esta noite     pode ser apenas esta
não dês alerta aos bichos dos varandins
às gatas e aos gatos com cio     aos homens com sabre
sossega as gazelas     vai à fonte e traz o azul 
eu estarei à tua espera sem o falcão
sem o rei na barriga nem a gataria à espreita
[...]


Abel Neves, Úsnea,
Lisboa: Averno, 2015







[ID, Lx, 02/015]

quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

A resposta será, sem dúvida, que podemos representar a obra de uma vida reduzida a três tratados, e também a três poemas, ou a três acções, nas quais o poder de criação pessoal seja levado ao extremo. O que significa mais ou menos isto: calarmo-nos quando não temos nada para dizer, fazermos apenas o estritamente necessário quando não temos projectos especiais e, coisa esta muito importante, ficarmos indiferentes quando não experimentamos a sensação indescritível de sermos arrastados, de braços abertos, por uma vaga da criação. 


Robert Musil, O Homem Sem Qualidades



*



[...] Estas árvores vão adoptar-me pouco a pouco, e para o merecer aprendo aquilo que é preciso saber:
Já sei olhar as nuvens que passam.
Já sei ficar parado.
E já sei quase calar-me. 


Jules Renard, Histoires Naturelles

terça-feira, 16 de janeiro de 2024

T de (Uma) teoria de pássaros (II)


O VÔO DOS PÁSSAROS


Os áridos pássaros que mudam as estações
não vieram nunca, embora eu os esperasse.
Acaso falam os homens do que viram?
Silenciosos são os lábios dos homens.
Grito ou palavra de amor não comovem
as pedras empedernidas pelo tempo.

Eram secos pássaros.
E o céu, que é plumagem, crepita.
Nem nos que voam nem nos que permanecem.
Não me demorei sôbre nenhum pássaro.
Voando, eram a velha canção da infância morta
para mim, que sempre vi o que não existe
e eternamente verei o que jamais existirá.

Em vôo, como os anos, a vida, o tempo...

Nada imaginei que pudesse ser admitido
pelos que não entendem uma teoria de pássaros.


- LÊDO IVO