segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

H de (A) Humanidade em Agosto (VI)


A PANTERA


De percorrer as grades o seu olhar cansou-se
e não retém mais nada lá no fundo,
como se a jaula de mil barras fosse
e além das barras não houvesse mundo.

O andar elástico dos passos fortes dentro
da ínfima espiral assim traçada
é uma dança da força em torno ao centro
de uma grande vontade atordoada.

Mas por vezes a cortina da pupila
ergue-se sem ruído - e uma imagem então
vai pelos membros em tensão tranquila
até desvanecer no coração.


RAINER MARIA RILKE traduzido por Vasco Graça Moura
in Revista Egoísta n.º 51, Casino do Estoril, Dezembro 2013

L de "Lived in bars"


A PANTERA


Exausto, ele já só vê os bares
que bruxuleiam  à sua frente desfocados;
parece que existem mil bares
e atrás desses mil bares um mundo vazio.

A rotina de um pêndulo: rodar sobre os calcanhares até
sentir que atravessou o seu próprio corpo – como  whisky
despejado até ao gargalo e depois de volta ao fundo da garrafa.
Ele gira sobre o eixo da sua vontade dormente e perplexa.

Às vezes, porém, as persianas dos olhos
abrem-se e deixam entrar uma imagem – um rosto, talvez –
disparando por entre os músculos tensos, aliviando
os membros, correndo até ao seu coração para morrer.


Robin Robertson, Slow Air,
Londres: Picador, 2002
[Trad. ID]

sábado, 21 de dezembro de 2013

E de "E ando na vida à procura/ Duma noite menos escura" (III)


O que buscamos
uns nos outros
é sempre a noite


José Tolentino Mendonça, A Papoila e o Monge,
Lisboa, Assírio & Alvim 2013

E de "E ando na vida à procura/ Duma noite menos escura" (II)


RUBOR DOS MADRUGADORES


Para Henri Mathieu



A verdade é pessoal.
   

Cuidado: nem todos são dignos da confidência.
   
Abraçarei aquele que, emergindo do seu cansaço e do seu suor, se aproximará para me dizer: "Vim enganar-te."
    
Ó grande barreira negra, a caminho da tua morte, porque é que te cabe sempre mostrar o relâmpago?

  


I

O estado de espírito do sol nascente é de alegria, apesar do dia cruel e da recordação da noite. A cor do coágulo torna-se o rubor da aurora.

II
Quando temos a missão de acordar, começamos por nos lavar no rio. O primeiro encantamento, tal como o primeiro assombro, são para nós próprios.

III
Impõe a tua sorte, agarra com força a tua felicidade e enfrenta o teu risco. Observando-te, eles acabarão por se habituar.

IV
No auge da tempestade, há sempre um pássaro para nos tranquilizar. É o pássaro desconhecido. Canta antes de levantar voo.

V
A atitude mais sábia é não se aglomerar, mas, na criação e na natureza comuns, encontrar o nosso número, a nossa reciprocidade, as nossas diferenças, a nossa passagem, a nossa verdade, e esse toque de desespero que lhes serve de aguilhão e de nevoeiro instável.



VI

Vão ao essencial: não precisam de árvores jovens para reflorestar o vosso bosque?



A intensidade é silenciosa. A sua imagem não. (Amo quem me ofusca e acentua depois a escuridão dentro de mim.)



VIII
Como sofre o mundo, para se tornar do homem, ao ser façonné ente as quatro paredes de um livro! Que o entreguem depois às mãos de especuladores e de extravagantes que o pressionam para avançar mais depressa do que o seu próprio movimento, como não ver nisso apenas falta de sorte? Combater 



René Char
[Trad. ID - A continuar]

E de "E ando na vida à procura/ Duma noite menos escura"




[Julho 2012]

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

M de "My house, I say" (IV)


bagos de surpresa pelo chão - as palavras

com elas pode-se morar uma casa

aceso o lume
composta a mesa


Paulo Pais, Gravador de Chamadas,
Porto: Campo das Letras, 1997

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

S de Sete rosas mais tarde (III)


14
O MORTO: A FLOR DE SI


A única coisa certa sobre o morto
é que já foi senhorio de carne:
agora é perdê-la flor que se
evapora e sorrir até aos ossos. 


Alexandre Pinheiro Torres, A Flor Evaporada,
Lisboa: Publicações D. Quixote, 1984




Dois dos desenhos de Sofia de Sousa para a edição de 1919 
de Dinis e Isabel - Conto de Primavera.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

T de Tratado de Pedagogia - LXI b


"A vida antiga foi apenas silêncio. Foi só no século XIX, com a invenção das máquinas, que nasceu o ruído. Hoje em dia, o ruído domina soberanamente a sensibilidade dos homens. Durante vários séculos, a vida decorria em silêncio ou em surdina. Os ruídos mais recorrentes não eram intensos, nem prolongados, nem variados. De facto, a natureza é normalmente silenciosa, excepto as tempestades, os furacões, as avalanches, as cascatas e alguns movimentos telúricos excepcionais. É por isso que os primeiros sons que o homem extraiu de uma cana furada ou de uma corda estendida o maravilharam profundamente."
 
 
Luigi Russolo, A Arte dos Ruídos - Manifesto Futurista, 1913,
trad. Miguel Martins, Lisboa: Momo, 2013
 

sábado, 14 de dezembro de 2013

T de Tratado de Pedagogia (LXI)




"[...] A bailarina e coreógrafa Vera Mantero foi à Serra do Caldeirão. [...] É verdade que na dança contemporânea a música pode ser o puro ruído, ou ser apenas música implícita. Mas o silêncio da serra é outra coisa: é a suspensão de todo o movimento humano. Por isso, a peça acaba por ser muito mais um poema - um poema como os de Artaud, 'um homem que, como diria Herberto Helder, tinha as correntes da terra ligadas às corrente do poema', diz Vera -, já que a poesia tem um pacto antigo com o silêncio. [...]"


António Guerreiro,
no Ípsilon (13/12/2013)

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

E de "É assim que se faz a História. Sem palavras a mais." (XLIX)


Afinal a história é uma questão de escrita. É por isso que a função irónica dos intelectuais tem tanta importância. Antes de se terem deslocado para o terreno da consciência moral, eles desafiavam o previsível em discursos que reuniam espírito, subtileza, jogo da contradição, ironia. Hoje, porém, o prazer da desobediência dá cada vez mais lugar à acusação de irresponsabilidade. O modo de escapar a isso é então o pensamento radical. Assim definido: "uma forma feliz e uma inteligência sem esperança". Ou seja, a esperança é a de uma ironia do mundo, a começar pela linguagem e pelas ficções desreguladoras que se vão construindo como muros a separar o artifício do artificial.


Silvina Rodrigues Lopes,
citada in Cão Celeste n.º4, Lisboa, 2013, p.27



domingo, 8 de dezembro de 2013

E de Estudos literário comparados - II b


I heard a Fly buzz – when I died –
The Stillness in the Room
Was like the Stillness in the Air –
Between the Heaves of Storm –

The Eyes around – had wrung them dry –
And Breaths were gathering firm
For that last Onset – when the King
Be witnessed – in the Room –

I willed my Keepsakes – Signed away
What portions of me be
Assignable – and then it was
There interposed a Fly –

With Blue – uncertain stumbling
Buzz – Between the light – and me –
And then the Windows failed – and then
I could not see to see –



domingo, 1 de dezembro de 2013

P de "Primavera, Verão, Outono, Inverno e... Primavera" (IV)


(gritar lobo)


continuei a regressar ao lugar onde me habituei a gritar lobo até muito depois de teres deixado de ir em meu auxílio. o inverno foi rigoroso, as espécies do medo extintas com cobertores e alguma companhia – com uma presença recuada, sobreviveu apenas essa falta de jeito adolescente que aprendemos a dissimular por motivos profissionais. antigos uniformes militares desenhados com cores primárias, listas com números de telefone, mapas, tudo o que a memória imediata atirou um dia para o interior de pequenas caixas, à espera de catalogação, descrição, esquecimento. esta noite venho dizer-te que encontrei o santo e a senha escritos no verso de um bilhete de autocarro, mas não a tua morada. já ninguém vive nas mesmas ruas passados tantos anos e a luz amarela e suja de uma lâmpada nua balança sobre um jogo de cartas deixado a meio. nessa época, só nos rendíamos a quem não nos queria vencer. sei que haveria uma lição a retirar de tudo isto, mas prefiro acusar-te de falta de resistência num jogo que um de nós poderia ter ganho, mas ambos perdemos.


Tiago Araújo, Respirar debaixo de água,
Lisboa, Averno, 2013

sábado, 30 de novembro de 2013

S de Sense of Snow (XIII)



Izis Bidermanas, 'Maurice Utrillo', 1950s



Maurice Utrillo,1912

H de Humanidade (II)


A HUMANIDADE EM AGOSTO


para a Inês, que esteve lá


Era uma tarde assim, como já sabíamos
ou devíamos, pelo menos, calcular:
insuportável o calor, duvidosa a alegria.
Mas íamos fazer compras e
era Agosto, mês de pouca gente

que viu, como nós, o autocarro
parar bruscamente.
Quatro pequenos cães, de famílias
por certo bem diferentes, atravessavam
num sereno susto o alcatrão. Desconheciam
que tudo (sim, não é apenas o tabaco)
pode matar num dia qualquer os que estão vivos.

Seguiam quase ordeiros, sem caminho.
E não sabiam. Como poderiam saber
que eram as vítimas ocasionais
de umas férias mais tranquilas
para esses mesmos que, na sua excessiva
humanidade, os abandonaram à nenhuma sorte?

E a caravana passou, rodeada de silêncio.
O mais pequeno e farrusco, o que
vinha atrás, parecia não acreditar ainda
que era este o seu destino, nem urbano
nem campestre; simplesmente intolerável.
Doía muito ver-lhe os olhos, e ser humano
como os humanos que ali se libertaram
dele, para garantir a liberdade que não têm.

Pouco tempo depois, o autocarro arrancou.
Chegaremos mais devagar à mesma morte. Mas
chegaremos. Eu sempre achei a humanidade o que
de pior havia sobre a terra. Preferia, às vezes, não ter razão.


Manuel de Freitas
in Telhados de Vidro n.º 9, 
Lisboa, Averno, Novembro de 2007

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

O de "O mar, o mar" (IV)

 
"[...]
E o mar serenava por um instante e as sombras iam-se.
E eu esperava ansioso que ao silêncio se seguisse o seu marulhar sinistro e angustioso, e n'estes momentos tão longos de ansiedade estremecia se o estalar da madeira, ressequida do ar do mar e novamente humedecida da tempestade, se fazia ouvir, ou se, algum prato mal seguro na prateleira, descaía, fazendo ouvir um rumor quase imperceptív...el n'outra ocasião e medonho n'aquela.
E desejava novamente o doido assobiar do vento e o cavo marulhar do mar.
[...]"


Ângelo de Lima, Poesias Completas,
Lisboa, Assírio & Alvim, 1991
 

domingo, 24 de novembro de 2013

E de "É assim que se faz a História. Sem palavras a mais." (XLVIII)


PASTELARIA



Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante!

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao [precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra



Mário Cesariny, Nobilíssima Visão (1945-1946),
Lisboa, Assírio & Alvim, 1991




[Lisboa, 23/11/013]

sábado, 23 de novembro de 2013

H de Heart of darkness (II)


quinta-feira, 21 de novembro de 2013

L de Louvor e simplificação


23. Mas falemos dos animais. O interessante nos animais é que nunca simplificam, ao contrário dos homens. Os homens simplificam, porque conseguem ver sempre outra camada e outra e outra; no fundo, são animais que antes de simplificar complicam, é a sua natureza, a do homem. E como sabem complicar à brava, por vezes, entediam-se ou ficam cansados ou distraídos, olham para outro lado e zás: eis que o estranho sucede: simplificam. Louvados sejam (eis um à parte) os homens que simplificam (é o que me parece).
 
 
Gonçalo M. Tavares, "Breves notas sobre o poder"
in Granta n.º2, Lisboa, Tinta-da-china, 2013
 
 
 
*
 
 
 
CAMADAS
 
 
Um quarto como há mil, assim parece.
Raízes de cabelo o tecto são.
Muito pó, sim. Um armazém talvez.
Mas íntimo. Sem nada de um salão.
 
É a primeira vez que eu aqui estou,
Pois nunca ousara entrar. Ali diante,
Pela porta me passava já na infância
Um cheiro adocicado, penetrante.
 
Há um armário. Eu venço a timidez.
Gaveta por gaveta, com mãos ousadas,
Desvelo. Vejo caixas. Mas eu sei
Que a essas manterei sempre fechadas.
 
 
Gerrit Komrij
in Contrabando - uma antologia poética, trad. Fernando Venâncio,
Lisboa, Assírio & Alvim, 2005

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

E de Espinhas para um gato (XVI)


A CAMA DE FERRO
 
 
Olham uma menina e um gato
Num espelho qual buraco de fechadura
Vendo outra menina e outro gato.
 
Coisa alguma o fardo alivia
Do espelho e do armário de gavetas.
A eles se agarrou muita poesia.
 
Poemas como caixas, dentro nada.
Ou, se algo houver, será apenas isto:
Triste cama em marquise envidraçada.
 
 
Gerrit Komrij,
Contrabando - uma antologia poética, trad. Fernando Venâncio,
Lisboa, Assírio & Alvim, 2005 

sábado, 16 de novembro de 2013

O de "O mundo está escuro: ilumina-o"




Maria Yudina
(Petrograd University, early 1920s, photo from the collection of Yakov Nazarov)



sexta-feira, 15 de novembro de 2013

D de Dansa (III)


ELA DANÇA SOBRE PREGOS


Versos magoam, a folha angustia.
Dão guinadas no corpo, infernais.
É o teu mal: leste poemas a mais.

Melhor perderes-te em música obscena,
Melhor deitares-te a ouvir a cantilena
Do fogo consumindo uma pirotecnia,

Melhor rebolares-te em sei lá quê
Do que a dor e o decoro de que vê
Ir-se a vida na Paixão da Poesia.


Gerrit Komrij, Contrabando - uma antologia poética,
trad. Fernando Venâncio, Lisboa, Assírio & Alvim, 2005

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

U de "Um homem pode o seu coração"


[...] Dupla afirmação de matéria e tempo, a palavra condensa o que de essencial se passa nas metamorfoses do humano. Pelas palavras se difundem os fluxos que determinam o nosso pensar e agir, por elas o homem se sabe sem definição, transitório. E sabe-se igualmente prematuro. Porque há as palavras antes de si. E a vida é urgência de encontrar essas palavras anteriores, sempre anteriores e sempre futuras num espaço de «devir como simultaneidade». Antes da narrativa há as palavras. Antes da comunidade e antes do mundo há as palavras. Palavras que o homem usa como moeda desvalorizada e que a sua necessidade de domínio, objectividade, lhe faz esquecer sob o imperialismo dos factos. Mas palavras que deflagram no dizer poético, vindas de outros, para outros. E não substituem objectos desaparecidos: são onde fica a possibilidade do homem, a possibilidade de se dirigir ao outro homem. [...]




Silvina Rodrigues Lopes
in Teoria da Des-possessão, Lisboa, Averno, 2013

domingo, 10 de novembro de 2013

P de Poética - XXXII b


[...]

Atravessas
com um sorriso indefinível
as fronteiras:
conheces os espinhos de todas as sebes.

E avanças,
para lá dos hálitos quentes dos homens,
do sono após o amor,
da angústia e da prisão.

[...]


Antonia Pozzi
[Trad. ID - aqui]





Daniela Gomes
in Inês Dias, In Situ, Lisboa, Língua Morta, 2012

P de Poética (XXXII)


"Porque a poesia, verdadeiramente, tem esta tarefa sublime: pegar na dor que espuma e ronca na nossa alma e sossegá-la, transfigurá-la na calma suprema da arte, como fazem os rios ao desaguar na vastidão celeste do mar. A poesia é uma catarse da dor, como a imensidão da morte é uma catarse da vida." 



 Antonia Pozzi
[Via José Carlos Soares]


sábado, 9 de novembro de 2013

R de Rezar na era da técnica (XII)




Federico Fellini, La dolce vita (1960) 

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

T de "Todas as manhãs do mundo"


"Senti que tu querias falar comigo,
na verdade e verdadeiramente; que, à falta de companheiros contemporâneos, tinhas vindo até à beira da minha cama reflectida na água; também estavas reflectido no teu livro como se a tua boca lesse o que escrevias. Senti então amor por ti, mais e menos que paixão, uma espécie de modificação dos sentimentos do amor. Tu ajudavas-me a escrever, eu era uma das tuas necessidades mais amadas."


Maria Gabriela Llansol 
citada in Silvina Rodrigues Lopes, Teoria da Des-Possessão
Lisboa, Averno, 2013.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

T de "Treze maneiras de olhar para um melro" - XIII


XIII.


Fez noite toda a tarde.
Estava a nevar.
E ia nevar.
O melro pousou
Nos ramos do cedro. 




WALLACE STEVENS
[Tradução e fotografia de Inês Dias - Lisboa, 03/010]

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

domingo, 3 de novembro de 2013

P de Perder a cabeça (XI)



Lehnert & Landrock of Cairo, "Karnak - The Amon Temple", circa 1925

sábado, 2 de novembro de 2013

A de Altar (IV)





"[...] O México. Os longos cabelos da morte na cabeça do fígado dos vivos. [...]"
MANUEL DE CASTRO

[Lisboa, 1/11/013 e 20/06/012]



quinta-feira, 31 de outubro de 2013

S de "Sleeping is the only love" (III)




LAWRENCE'S, QUARTO TRADIÇÃO


para a Inês Dias e a Marta Chaves


Dormes, e eu não. O que tem sido
uma constante, inversamente recíproca,
dos dias e das noites que aceitámos partilhar.

Lá em baixo, a desoras, o rebanho
passa, faz-me ouvir os breves
badalos, entre folhagem seca.
De Lisboa só nos chegam notícias
fúnebres, dispensáveis. Caim deu boleia
a Abel, num automóvel de luxo.
E arrasta-se, entre putas e ladrões,
um tango triste que já não queremos dançar.

É apenas isso. Dorme. Talvez amanhã,
subitamente, o mundo nos pareça perdoável.


Manuel de Freitas, Cólofon,
Lisboa: Fahrenheit 451, 2012

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

A de A poesia é o menos (II)


AU SOLEIL
 
 

Il ne s'agit pas d'être le feu, mais de se faire un peu de feu
Quand on a froid et que l'humide veut régner sur nous peu à peu,
II ne s'agit pas d'aller toujours sur une grand-route prévue
Mais de pouvoir flâner un peu comme fait même l'âne qui broute,
II ne s'agit pas d'être partout mais de choisir un petit coin,
Appelez-le arbre, maison ou femme ou bien morceau de pain,
Un jour je t'expliquerai ce que sont le ciel, les étoiles
Et ce que tu es toi-même, avec ton or innocent,
Je te ferai quelques croquis sur le tableau noir de la nuit,
Mais si tu veux y voir clair, il faut venir tous feux éteints.


- Jules Supervielle (1959)
 

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

M de Música - b




- in Manuel de Freitas, A Noite dos Espelhos,
Lisboa, frenesi, 1998



*




T de "Treze maneiras de olhar para um melro" - XII


XII.


O rio move-se.
O melro deve estar a voar. 




WALLACE STEVENS
[Tradução e fotografia de Inês Dias - Santa Cruz, 09/012]


[...] O sentimento apaixonante de ser eleito fosse para o que fosse, eis a única coisa certa e bela que se reflecte no olhar daquele que avalia pela primeira vez o mundo. Se este é senhor das suas emoções, nada encontra a que possa dizer sim sem reserva; busca a bem amada possível, mas ignora qual ela é; tem capacidade de matar, sem estar seguro de que o deve fazer. O desejo de evoluir, próprio da sua natureza, impede-o de acreditar no facto realizado, mas tudo quanto vem a conhecer apresenta-se como se fosse já irrevogável. Pressente que esta ordem não é tão estável como parece; nenhum objecto, nenhuma pessoa, nenhum princípio é sólido, tudo está dependente de uma metamorfose invisível, mas nunca interrompida; há mais futuro no instável do que no estável e o presente não passa de uma hipótese que ainda não foi ultrapassada. Que poderia ele fazer de melhor do que conservar a sua liberdade em relação ao mundo, como um sábio que se mantém livre em relação aos factos que poderiam levá-lo a acreditar prematuramente em si? Por isso hesita em ser seja o que for; um carácter, um modo de vida, definido, uma profissão, não passam de representações sob as quais avulta já o esqueleto que será tudo quanto lhe resta no fim. Busca compreender-se por outros meios; com aquele apetite de que é dotado para tudo quanto pode vir a enriquecê-lo interiormente (mesmo para além dos limites da moral e do pensamento), experimenta a impressão de ser um passo, livre de seguir em todas as direcções, mas que vai sempre de um ponto de equilíbrio até ao seguinte, e sempre em frente. E se imagina, um belo dia, ter encontrado a ideia justa, apercebe-se de que uma gota de incandescência invisível caiu sobre o mundo e que a Terra, com a sua luz, mudou de aspecto.


Robert Musil, O Homem Sem Qualidades,
Lisboa: Livros do Brasil, s/d
 
 
*
 
 
8. O mundo não é assim tão complicado: levantas os olhos, baixas os olhos, esticas o braço e tocas; não esticas o braço, és tocado.

Gonçalo M. Tavares, "Breves notas sobre o poder"
in Granta n.º2, Lisboa, Tinta-da-China, 2013
 

domingo, 27 de outubro de 2013

M de Música




Lisboa, 09

S de "Semantics won't do" (XXIII)




Béla Tarr e Ágnes Hranitzky, THE MAN FROM LONDON, 2007

T de "Treze maneiras de olhar para um melro" - XI


XI.


Ele atravessava o Connecticut
Numa carruagem de vidro.
Um dia, o medo apoderou-se dele,
Ao confundir
A sombra dos seus cavalos
Com melros.




WALLACE STEVENS
[Tradução e fotografia de Inês Dias - Moinho Grande, 08/013]

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

E de Educação

"Mas este vento de onde veio? À força de viver com crianças _____ concluí que toda a criança é rara e importante, e que a sua contemplação me ensinou a descondicionar o saber.
Uma educação nacional planificada é superstição."


Maria Gabriela Llansol, Uma data em cada mão - Livro de Horas I,
Lisboa: Assírio & Alvim, 2009

T de "Treze maneiras de olhar para um melro" - X


X.


Ao verem melros
A esvoaçar na luz verde,
Até as alcoviteiras da eufonia
Gritariam subitamente.




WALLACE STEVENS
[Tradução e fotografia de Inês Dias - Lisboa, 07/012]

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

P de "Postais do fim do mundo" (IV)


TO POSTERITY


When books have all seized up like the books in graveyards
And reading and even speaking have been replaced
By other, less difficult, media, we wonder if you
Will find in flowers and fruit the same colour and taste
They held for us for whom they were framed in words.
And will your grass be green, your sky be blue,
Or will your birds be always wingless birds?


Louis MacNeice, Colllected Poems,
Londres, Faber and Faber, 2007




terça-feira, 22 de outubro de 2013

A de "A poesia é o menos"



"Onde não possas amar, não te demores (Eleanora Duse)"

Eastwood da Silva, 535 Máximas,
Lisboa, &etc, 1999




domingo, 20 de outubro de 2013

T de "Treze maneiras de olhar para um melro" - IX


IX.


Quando o melro desapareceu de vista
Marcou o limite
De um de muitos círculos.




WALLACE STEVENS
[Tradução e fotografia de Inês Dias - Santarém, 06/013

sábado, 19 de outubro de 2013

F de "(Une) Famille d'Arbres" (VII)


AUTOBIOGRAPHY


In my childhood trees were green
And there was plenty to be seen.

Come back early or never come.

My father made the walls resound,
He wore his collar the wrong way round.

Come back early or never come.

My mother wore a yellow dress;
Gentle, gently, gentleness.

Come back early or never come.

When I was five the black dreams came;
Nothing after was quite the same.

Come back early or never come.

The dark was talking to the dead;
The lamp was dark beside my bed.

Come back early or never come.

When I woke they did not care;
Nobody, nobody was there.

Come back early or never come.

When my silent terror cried,
Nobody, nobody replied.

Come back early or never come.

I got up; the chilly sun
Saw me walk away alone.

Come back early or never come.


Louis MacNeice, Collected Poems,
Londres, Faber and Faber, 2007

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

V de Viagens (VII)



Cascais-Lisboa, 18/10/013

E de Epígrafe (II)


BARCELONA IN WARTIME


In the Paralelo a one-legged
Man sat on the ground,
His one leg out before him,
Smiling. A sudden sound

Of crazy laughter shivered
The sunlight; overhead
A parrot in a window of aspidistras
Was laughing like the dead.


Louis MacNeice, Collected Poems,
Londres, Faber and Faber, 2007



*




ENUMERAÇÃO


As pessoas demoram-se pouco na rua; olham.
Os números sobre as portas não significam nada.
O carpinteiro prega uma mesa estreita e comprida.
No poste telegráfico colam uma lista de nomes.
Um pedaço de jornal ficou preso nos espinhos: zumbe.
Sob as folhas das videiras estão as aranhas.
Uma mulher saiu de uma casa e entrou noutra.
A parede amarela, de fresco, com reboco caído.
Uma gaiola com um canário na janela do morto.
 

 Yannis Ritsos (trad. Custódio Magueijo)
in Inês Dias, Um raio ardente e paredes frias,
Lisboa: Averno, 2013



quinta-feira, 17 de outubro de 2013

S de Sense of Snow (XII)




The room was suddenly rich and the great bay-window was
Spawning snow and pink roses against it
Soundlessly collateral and incompatible:
World is suddener than we fancy it.

World is crazier and more of it than we think,
Incorrigibly plural. I peel and portion
A tangerine and spit the pips and feel
The drunkenness of things being various.

And the fire flames with a bubbling sound for world
Is more spiteful and gay than one supposes -
On the tongue on the eyes on the ears in the palms of one's hands -
There is more than glass between the snow and the huge roses.


Louis MacNeice, Collected Poems,
Londres, Faber and Faber, 2007


quarta-feira, 16 de outubro de 2013

T de "Treze maneiras de olhar para um melro" - VIII


VIII.


Sei de tons nobres
E de ritmos lúcidos, irresistíveis;
Mas sei, também, 
Que o melro faz parte
Daquilo que sei.




WALLACE STEVENS
[Tradução e fotografia de Inês Dias - Vila Real, 11/012

R de (O) rio da minha aldeia (VII)





Vasco Graça Moura e Gérard Castello- Lopes, Giraldomachias
Lisboa, Edições Quetzal / Casa Fernando Pessoa, 2000

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

T de "Treze maneiras de olhar para um melro" - VI e VII


VI.


Os pingentes de gelo cobriam a longa janela
De vidro bárbaro.
A sombra do melro
Atravessava-a, de um lado para o outro.
O ambiente
Desenhava na sombra
Uma causa indecifrável.



VII.


Ó homens magros de Haddam, 
Porque é que imaginam pássaros de ouro?
Não vêem como o melro
Anda entre os pés
Das vossas mulheres?





WALLACE STEVENS
[Tradução e fotografia de Inês Dias - Lisboa, 04/013

domingo, 13 de outubro de 2013

T de "The days grow short" (VIII)


ANINHAS


Um gato dorme ao meu lado, debaixo do meu braço direito, com o focinho apoiado na minha clavícula, seguro de que não me moverei nem desmontarei o abrigo em que se aninha, junto ao meu corpo. Sinto-lhe o pulsar, a respiração das árvores que lhe duram quatro estações num segundo de peito. Da inspiração à expiração, um ano de crescimento definha-se no seu sopro; como nas imagens míticas do vento encabeçando os pontos cardeais. Embala-me — seja eu um dorso de madeira flutuando entre mares — e embalar-me-á. O meu gato é o meu tempo. E o meu tempo é este tempo em que tenho os sonhos de um gato por companhia. Por ele trocaria o tempo em que sou apenas abrigo para animais domésticos.

— só deus mora nos gatos.


Gostaria de ter por casa o interior de um sonho em que apenas se recorde o negativo extraído ao mundo. Sonhar-me estática ou em movimento através da passagem da luz pelos slides; imagens projectadas a sépia contra uma parede de maior idade — salpicadas a sépia todas as paredes são lamentos de outonos passados — sem futuro, parando na finitude de um encantamento menor em que deus ainda não havia sido privado do meu corpo.


— deus mora nos gatos, à falta de melhores dias no corpo dos vivos.



Beatriz Hierro Lopes, É Quase Noite,
Lisboa, Averno, 2013

T de "Treze maneiras de olhar para um melro" - V


V


Não sei se prefiro
A beleza das entoações
Ou a beleza dos subentendidos,
O melro a assobiar
Ou o instante depois.




WALLACE STEVENS
[Tradução e fotografia de Inês Dias - Santarém, 01/013

sábado, 12 de outubro de 2013

P de Poética (LII)


EU TINHA GRANDES NAUS


Os amantes esquecem. A primavera volta.
A terra treme. E passam as aves em bandos
vindas de Heligoland por detrás da serra.
O teu olhar poisava em mim: estava certo
que fosse dessa maneira. Agora esqueceste
- também está certo, a gente crê-o como tal. 
Porque passar, voltar, tremer, poisar, 
esquecer o que foi agudo e fundo
são coisas, digo bem, de todos os dias.

Os poetas lamentam-se de mais.
Gastam-se por vezes num choro muito fino,
quase impraticável. Querem ser ouvidos,
e vá de escreverem tal e tal desgraça.
Mas estão desempregados? morreu-lhes a mãe?
a chuva entra pelas solas com buracos?
Ou vão mover o mundo, as azenhas do mundo?

Se o teu olhar já não poisa em mim,
paciência, não morrerei por isso.
Iuri Gagárine lá foi pelo céu acima.
Aliás a vida tem recursos admiráveis.
"Há um futuro à espera", porque não também
uma outra mulher que no futuro me espera?
Os amantes esquecem: é que alguma coisa
os leva (recônditamente) a esquecer.
A primavera volta, as aves passam em bandos;
e a mesma terra, quando treme, treme
cheia de naturalidade. Tudo isto
fará a delícia e o horror dos nossos filhos.

Os poetas, que se lamentam de mais,
acenam com as suas dores particulares
a quem passa, que passa por outras razões.
Querem dedos suaves na testa, um calor
de lábios nas pálpebras molhadas.
São poetas, isto é, seres em aflição.
Campainhas tocando ao mais pequeno vento.
Querem ser ouvidos, consolados, tapados do frio.
Temem o desprezo, a desolação ambiente,
os cães que ladram muito alto muitas vezes.

Mas o Maio volta. É bom saber
que num dia qualquer de um destes anos
vamos todos rir e dar as mãos,
troçar do domador se ainda houver.
Os amantes amam: são coisas
da primavera.
Os poetas consertam-se: são coisas
da sua mecânica misteriosa.

Portanto não morri. Eu tinha grandes naus
aparelhadas na ribeira do coração.
Portanto não morri. Caíram árvores,
camponeses gritavam enquanto a chuva
mordia raivosamente as coisas do mundo.
"Paciência", dizia eu, "não morrerei por isso".
E esperava o sândalo e a canela.


Fernando Assis Pacheco, Cuidar dos Vivos,
Coimbra, Cancioneiro Vértice, 1963

T de "Treze maneiras de olhar para um melro" - IV


IV.


Um homem e uma mulher
São um.
Um homem e uma mulher e um melro
São um.




WALLACE STEVENS
[Tradução e fotografia de Inês Dias - Beja, 08/013

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

C de Conhecimento explícito da língua


"[...] Tomemos de uma brasa quente, e a coloquemos na palma da mão. Se eu disser que é a brasa que queima minha mão, estaria incorreto. Para tudo dizer deveria afirmar que o que queima é a negação, pois a brasa contém algo que a minha mão não contém. E é este não que me queima. Mas se minha mão contivesse tudo aquilo que a brasa contém, então seria da mesma natureza do fogo. Neste caso, nem todo fogo do mundo queimaria minha mão. [...]"

trad. de Marcos Beltrão 

domingo, 6 de outubro de 2013

T de "Treze maneira de olhar para um melro" (III)


III.

O melro rodopiava nos ventos de Outono.
Era uma ínfima parte da pantomina.




WALLACE STEVENS
[Tradução e fotografia de Inês Dias - Lisboa, 12/012

A de Andar a pé


Sinto o mesmo em carrosséis, táxis e às vezes autocarros:


"Para Moosbrugger, que pouco se preocupava com o seu conteúdo, este trajecto era uma distracção. Entre dois períodos de cadeia, calmos e sombrios, surgia um tempo diferente, como uma onda de espuma branca e opaca. Fora, aliás, sempre assim que ele vira a liberdade."

Robert Musil, O Homem Sem Qualidades,
Lisboa, Livros do Brasil,  s/d

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

J de (O) Jardim e a Casa - XIX


CANCIÓN DEL DIOS SIN ORILLAS


A Pilar Pardo e Raúl Pizarro



El gorrión precavido
me mira y guarda silencio.
Habita en ese otro lado
al que yo no pertenezco.

Me ve dentro, en su jardín,
llevando atrás a mis muertos,
los que me preguntan cómo
salir de nuevo a lo abierto.

El gorrión precavido
que ve lo que yo no veo
- simas de un Dios sin orillas - 
porque a mí me asusta verlo.


José Mateos, Cantos de vida y vuelta,
Valência, Editorial Pre-Textos, 2013

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

P de (The) Privacy of Rain - XLVIII


 
"[...]
Raios me partam se não fujo!
Desta chuva que me inquieta a memória. Aquela tarde como cascas de ovos a estalar entre os dedos matando possíveis nascentes ou ludibriando os pássaros para voar sobre umas asas escondidas de penas soltas.
Entre luzes de néon e cartazes gigantes, uma sombra muito pálida de alguém que não dormiu. Prestes a despenhar-se. Segura-se nas grades.
[...]"
  
Silvina Rodrigues Lopes, E se-pára, Lisboa, Hiena Editora, 1988


F de Fazer Fotografia (LXVI)


© Paulo Nozolino

domingo, 29 de setembro de 2013

P de (The) Privacy of Rain - XLVII




[...]
Piove en el barrio
en la cheno oscura.
Nubes de atorro
cubren la luna. 

Juná la lluvia en la yeca,
estrilando en la ventana.
Juná al viento e la neblina 
que al ancho río deschavan.

[...]

sábado, 28 de setembro de 2013

E de Estádio


O GRANDE CAÇADOR


O visível revela
uma realidade invisível.
Ano após ano o vazio
dos que desaparecem
atravessa o escudo da vida
e apodera-se dos nossos corpos
Todos os anos conheço gente
que desaparece no café.
Posso invocar os seus nomes,
assinalar o seu vazio.
Por essa frincha da vida
escorre, transparente,
a morte.


Ramón Mayrata, Poemas del Café Estigia,
Madrid, Calambur, 2004
[Trad. ID]