quinta-feira, 23 de maio de 2019

C de "Celui qui regarde une fenêtre fermée" (V)


[...]
Por vezes fixo uma data, talvez até ao fim da minha vida. E quando chegar um dia antes desse dia, posso lembrar-me sempre de um facto que se lhe prende. Não importa que seja um aniversário. Pode não passar de um gesto, de um rosto que para sempre ficou perdido na distância não só do tempo como de uma rua, de uma sala de museu, de uma loja. Durou segundos, mas traz o traço, a sombra, a luminosidade capaz de se prender pelo que houver de longo na minha vida. Irrompe no exacto dia do aniversário da sua aparição, ou andará próximo desse instante. Nem sempre é um rosto, um corpo, ou um melro morto à beira de um passeio. Um objecto pode ser o senhor desse domínio festivo. Mesmo a morte de um melro ou de alguém amado transporta consigo um sentido de festa, de coisa que se comemora no mais secreto.
[...]


João Miguel Fernandes Jorge
in O Próximo Outono, Lisboa, Relógio D'Água, 2012





[ID, 20/01/017]

domingo, 5 de maio de 2019

D de "Deve ser com certeza um sítio muito triste" - VI c




Manuel de Freitas
[Manuel de Freitas | Federica Gullotta, trad. de Roberto Maggiani,
Milão, Edb Edizioni, 2019]

D de "Deve ser com certeza um sítio muito triste" - VI b


GRANDES ARMAZÉNS


Quando era criança, dizia à minha mãe,
em tempo de chuva,
em tempo de flores,
nas Galerias Lafayette ou Galerias Barbès:
"Mamã, compra-me, por favor, um poema."
Ela era doce, ela era demasiado prática
e comprava-me romances,
os Jules Verne,
os Maupassant e os Dickens.
Quando era criança, dizia à minha mãe,
em tempo de amor,
em tempo de medo,
no Monoprix ou na Félix Potin:
"Mamã, compra-me, por favor, o invisível."
Ela era boa, ela era previdente
e comprava-me coisas:
camisolas, trotinetes,
kodaks, bicicletas.
Acabei por me calar e por escrever poemas.
Há muito tempo que a minha mãe morreu,
Jules Verne envelheceu
e as minhas bicicletas já não têm rodas.
Em tempo de cansaço,
em tempo de raiva,
vou ao Supermercado,
beber um conhaque sem gosto.
Quando, mais tarde, for uma criança
num mundo melhor,
direi à minha mãe:
"Mamã, compra-me, por favor, o silêncio."


ALAIN BOSQUET
[Trad. ID]

quarta-feira, 1 de maio de 2019

m, de memória (III)


RUA DOS CAVALEIROS DA ESPORA DOURADA

Para a Ginja


Imagino-os sempre
de olhos cegos,
de quem correu o mar
e aprendeu outra cor
para o mesmo sangue
– gridelém.

Não se apressam.
O coração mais fielmente negro
parou entretanto de bater,
deixando-lhes o peso
do seu embalo nas mãos vazias;
e trazem colada ao corpo
a cal da memória
– raparigas com cabelo de linho,
olhos de esmalte.

Chamam cada onda
pelo seu nome,
agora que todas elas são cinza
de lume familiar.
Tornaram-se veladores,
guiados pelo desatar invisível
da água nessa longa noite
– mortos ainda à procura
do calor de um gato.


Inês Dias
in AA.VV., Sete, volta d' mar, 2018




[Inês Dias, Ponto-Sombra, São Paulo, Corsário-Satã, 2018]

S.T.T.L.


"[...]
Feitos que poovoam o espaço e que chegam ao fim quando alguém morre podem maravilhar-nos, mas uma coisa, ou um número infinito de coisas, morre em cada agonia, a não ser que exista uma memória do universo, como conjecturaram os teósofos. No tempo houve um dia que apagou os últimos olhos que viram Cristo; a batalha de Junín e o amor de Helena morreram com a morte de um homem. Que morrerá comigo quando eu morrer, que forma patética ou inconsistente perderá o mundo? A voz de Macedonio Fernández, a imagem de um cavalo rubro no baldio de Serrano e de Charcas, uma barra de enxofre na gaveta de uma secretária de mogno?"


- JORGE LUIS BORGES,
 (trad. de Fernando Pinto do Amaral)




[ID, Estrela, Maio de 2017]